À conversa com... D. Lucília

Foi num ambiente familiar, à lareira, que encontrámos a D. Lucília. Alegre e bem disposta acolheu-nos em sua casa e  contou-nos um pouco da sua história de vida, da sua doença, das suas alegrias e das suas tristezas.

Deu entrada no Hospital Rovisco Pais em 1951, com 9 anos, mas aos 3 aninhos já a mãe, conhecedora e portadora da mesma doença, lhe tinha observado umas manchinhas no corpo. As sulfonas, medicamento utilizado na altura para o combate da doença de Hansen, eram comprimidos ‘muito grandes’ conta-nos: “… deram-me uns comprimidos para tomar, mas aquilo era muito grande e a minha mãe tinha que os desfazer em água e assim fui andando…” Um tempo mais tarde um médico do Hospital Rovisco Pais dirigiu-se a sua casa e disse que a mãe iria ser chamada para dar entrada no hospital, continua: “… mas eu tenho uma menina pequenina… - mas a menina vai também… ”

O tempo passou e só aos 9 anos deu efectivamente entrada no hospital, a 02 de Setembro, dia que nunca mais esquece pois nunca pensou que lá ficasse. “ … Eu, coitadinha de mim, convencida que vinha. Sempre! Abalamos no dia de manhã… eu andava entretida a apanhar aquelas pratas dos rebuçados de cores para dobrar tudo muito dobradinho para meter no bolso do avental. Cheguei à Tocha com o bolso cheio daquilo! Que era para brincar, porque pensava que vinha outra vez para casa.”

No caminho, depois de apanharem o comboio até Cantanhede tiveram que pedir transporte até ao hospital. O pai e o tio que as acompanhavam,  puderam ir à frente com o motorista mas ela e a mãe tiveram que ir atrás, juntamente com a carga, por causa do medo do contágio da doença. Ao chegar ao hospital foram separadas. A mãe, sendo já adulta foi para o pavilhão com as pessoas de mais idade e a pequena Lucília para o pavilhão das crianças: “… muito bem estava eu a brincar com elas mas quando chegou a noite eu não queria lá dormir. Queria ir para ao pé da minha mãe. E queria a minha mãe! E não fico aqui, não fico aqui!...” Assim convenceu, a pequena Lucília, a ser colocada junto da mãe. 
Inicialmente foram tempos muito difíceis, a integração, a perda de liberdade e a fome: “… aquilo não era nada bom no princípio. Passámos lá tanta fome! Eu e a minha mãe, e as outras pessoas... o pão era pouco, davam uns pãezitos pequenitos e mais nada. Nem tínhamos manteiga, não tínhamos nada para comer com o pão. Eu à noite dizia à minha mãe: tenho tanta fome!”

Depois da doença deixar de ser contagiosa poderiam sair e ir a casa durante um mês, mas as regras eram rigorosas e quando chegava a desobediência, esta era punida com prisão.

Uma vez, ao terem autorização para ir a casa, Lucília e a mãe ficaram mais do que o mês a que tinham direito. Ao regressarem ao hospital, esperava-as a prisão. Lucília, com o coração pesado tentou que a mãe não fosse presa: “… não queria que a minha mãe fosse para a cadeia e fui ao pé dele:
– Ó Sr. Doutor… 
– O que é que tu queres?
– Ó Sr. Doutor eu tenho 15 dias de cadeia e a minha mãe também.
– Já sabes que vocês transgrediram. O que é que vocês querem? 
– … Ó Sr. Doutor eu venho-lhe pedir um favor. A minha mãe não vê e o Sr. Doutor podia-me dar o tempo todo dela … e ela não ia para lá.”

Existe maior prova de amor? O médico ficou tão tocado com tal gesto de amor que perdoou os dias que a mãe de Lucília deveria ‘pagar’ na cadeia.

No entanto o rigor das regras não foi quebrado quando Lucília e a mãe saíram para o funeral do pai. Ao ultrapassarem os três dias a que tinham direito, no regresso esperava-as a cadeia e desta vez tanto uma como outra não foram poupadas de tal. 

Por volta de 1968, conta, começou a ser melhor, acabando por gostar de lá estar. Fez lá a escola e, ela e as outras meninas, faziam camas em troca de 50 escudos mensais. No entanto aos 16 anos já tinha uma grande reacção e muitas dores nas mãos. Estas começaram a ficar deformadas sendo difícil trabalhar.
Em 1970 conheceu o marido no Rovisco Pais. Também ele tivera a doença. Casaram-se em 1973 e viveram numa casinha dentro do complexo Rovisco Pais junto ao lago, até ao 25 de Abril. Nessa altura saíram e foram para a casa onde ainda se encontra hoje. O marido entretanto já partiu para a casa do Pai. 

Ao ser questionada sobre as suas maiores dificuldades actualmente, contando com 75 anos de vida, diz ser o facto de não ver e a dificuldade que tem com as mãos pois gostava de fazer as lides de casa sem ter necessidade de recorrer a ajudas.

Acarinhada por muitos na sua terra, D. Lucília recebeu uma homenagem da Câmara Municipal em 2007. Foi um reconhecimento da sua força e perseverança no Dia Internacional da Mulher. “… sou assim alegre porque ninguém tem culpa da minha tristeza/doença…” Conta-nos. Tem muitas pessoas amigas e não deixa de nomear as duas Manuela’s. “A Manuela é boa para mim… a comida da Manuela é melhor! É feitinha na hora!” Continuando a nomear vários nomes de pessoas amigas destaca o Pároco da terra, Padre André, de quem recebe muito apoio e a quem tem muito carinho e amizade; os vários colaboradores da APARF que a visitam regularmente, e a amiga de longa data, Dra. Sílvia Simão com quem fala periodicamente.

Numa mensagem final para as pessoas que muito sofrem, transcrevemos as palavras sábias de quem já passou por muito na vida, mas mantém um coração repleto de esperança e alegria:

“Que tenham sempre muita paciência, muita calma. Com isso é que a gente consegue sobreviver porque eu desde os 3 anos que sofro. Não tenho uma perna, não vejo e continuo a ser sempre a mesma mulher. Não podemos ir abaixo. Só Deus é que sabe o que nos tem para dar, mais nada. E contar sempre com a fé do Senhor, que só Ele é que nos pode ajudar e dar a força que tenho. Tem sido Ele e as minhas amigas, todas! Tenho muitas… Eu também tenho muita dor, mas olha, ofereço-as a Deus e pela conversão dos pecadores… Eu nunca falo com maus modos a ninguém… porque as pessoas não têm culpa das doenças.”

Da nossa parte: Bem-haja D. Lucília!

Sandra Figueiredo



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