O DIA DEPOIS DA NOITE

Na sala de urgência dizem-me que a técnica de saúde infantil não chegou ainda do fim de semana em Nampula e vou ter de ser eu a fazer a consulta de urgência das crianças. Digo que sim, que já estava a contar com isso. Mas o edifício onde funciona o atendimento às crianças é tão escuro que peço para me transferirem a secretária para o pátio interior do hospital. Que falta que nos faz uma boa iluminação...

Começa a chegar a procissão do paludismo... Vêm bichar (fazer fila) quinino e cloroquina, como bichavam milho nos tempos da guerra... E o cortejo das febres, interminável, estende-se já até ao fundo do pátio sem parar de crescer. Malária, malária, malária, anemia, desnutrição, queimaduras, pneumonias, pielonefrites, bilharziose - endémica na província - uma suspeita de doença celíaca, uma epilepsia e, claro, a sida de que suspeito constantemente, embora não possa fazer testes confirmatórios nem tenha tratamento antirretrovírico. É o que mais me dói não poder tratar nestas crianças. E pensar que, pelo menos nelas, a doença se poderia prevenir de modo tão simples... Mas não posso pensar nisso. Tenho de tratar só o que vejo e o melhor que sei. A cólera, felizmente, não anda por estas paragens nesta altura do ano e o sarampo é já praticamente desconhecido graças ao empenho das Irmãs nas campanhas de vacinação. Valha-nos isso, que com este grau de desnutrição o sarampo subiria a mortalidade para os 50%...

Foi nesse dia que, de súbito, o director me veio pedir opinião sobre uma reacção adversa que uma doente estava a ter a um medicamento. Fez um grande mistério. Chamou-me de parte com um ar muito circunspecto. Vinha acompanhado de uma senhora de olhos tristes.

- Que doença tem a senhora?

- Tem lepra, doutora...

- Lepra? Como assim? Mas existe lepra nesta zona?

(Ainda existia lepra, valesse-me São Lázaro?!)

Uma vergonha estranha invadiu-me de rompante, como se fosse uma criança que não sabe a tabuada e que de repente se apercebe de que é a única de todos os colegas que ainda não estudou a lição, ou a única que nunca ouviu a música que já todos cantam de cor...

- Que medicamento lhe está a provocar os efeitos secundários? - Perguntei.

- Rifampicina.

Felizmente era um medicamento que eu conhecia bem e pude responder à pergunta. Mas permanecia comigo uma angústia estranha... Não que fosse vergonha não conhecer uma doença que quase não existia no meu país, mas era como se tivesse acabado de vislumbrar um mundo diferente... Lepra?! Qualquer coisa de irracional pulsava dentro de mim e me gritava, contra a minha vontade, que algo de muito grave se passava em meu redor... Lepra! Fui totalmente apanhada de surpresa. (…)

Patrícia Lopes

in A Missão - Diário de uma médica em Moçambique

Dra. Patrícia Lopes

 

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