MITANDE - MOÇAMBIQUE

“Pelas 6h15 entra pela janela do quarto um quente raio de sol. Vejo-o ainda com os olhos semicerrados entre o colorido da cortina de capulana e a rede mosquiteira.”

Foi assim que acordei durante 15 meses naquela porção de África que tanto me fez feliz, por tanto sentir que fazia os outros felizes.

Hoje, de novo, tenho o privilégio de acordar no mesmo quarto, sair da mesma rede mosquiteira, amarrar a capulana à cintura e respirar a mesma África. Para trás ficam as aventuras de uma viagem tipicamente atribulada por cancelamento de voos, alfandegários interesseiros, viagens de chapa em veículos suspeitos e, por fim, a chegada a este pequeno paraíso, aos abraços de quem muito se quer e às lágrimas contidas de saudade.

São quase 8 horas no pátio da Paróquia de Santa Maria de Belém, localizada bem no Centro de Mitande. Ferrugenta e muda, ali permanece a Miss Índia, sobrevivente a pó, sol, crianças e outras espécies inimigas de uma bicicleta. Pego nela, depois de um matabicho com o aromático Ricoffy, pão caseiro e papaia e pedalo até à Unidade Sanitária, indiferente às artroses que qualquer bicicleta desenvolve naquele meio. É com alegria que revejo antigos colegas e com surpresa que eles me recebem. Visto a bata, entro na maternidade, pego no estetoscópio de Pinard e ouço o bater do coração fetal na barriga de uma mãe negra, tão ritmado como o pilão com que ela transforma o milho em farinha. Tudo permanece tão igual que chego a duvidar se alguma vez saí daquele gabinete, se alguma vez saí de Mitande. Só o número de testes de HIV positivos é diferente. Lamentavelmente, superior.

Saio depois de atender todas as grávidas que vêm para consultas pré-natais. Arrasto a Miss Índia – a marca mais comum de bicicletas pasteleiras em Mitande - até casa e a areia vermelha que pisa, uso-a como travão de último recurso (a Miss Índia sofre de inércia crónica a paragens, tal como a maioria das bicicletas em África).

Esperam por mim para um delicioso almoço, algumas folhas de feijão cozidas, Xima amassada com farinha de milho integral e um pedaço de porco morto há uns dias por ocasião de uma festa, conservado até hoje por técnicas de fumagem adaptadas às condições locais.

Pelas tórridas 2 horas da tarde, deixo a Miss Índia no Mestre. Desde que lhe peguei que a singela bicicleta, já de idade avançada, dava sinais evidentes de necessitar de cuidados de saúde. Quando me apercebi dos métodos de trabalho pouco ortodoxos do Mestre, era tarde de mais para tirar das suas mãos o meu meio de transporte preferido, pelo que virei costas e fui a pé visitar o Lázaro.

Lázaro é um ancião tanzaniano que encontrou o amor da sua vida em Mpata, a antiga leprosaria no distrito de Mandimba. O casal viveu aí durante anos, entregando resignadamente tudo o que a lepra lhe pediu. A ele, as mãos e os dedos dos pés, a ela, parte da capacidade visual. Mas nunca foi capaz de lhes retirar a alegria nem a vontade de viver. Quando finalmente foi disponibilizado o tratamento para a lepra, puderam sair da leprosaria e instalaram-se em Mitande, onde os visito hoje. Não cabem em si de tanta alegria, com certeza não estavam à espera que eu voltasse. Saíra com a promessa “se puder, hei-de voltar um dia”. E voltei. Voltei naquele dia principalmente para observar os seus pés, cujas feridas recorrentes teimam em surgir, indiferentes à falta de sensibilidade cutânea causada pela lepra. Voltei para ouvir as suas constantes queixas entre risos e lamentos e tentar remediá-las da melhor forma. Voltei para lhes dizer que não estão esquecidos. Voltei também, claro, para receber um saquinho do meloso arroz da machamba cultivado pelo casal.

De coração cheio, subo a encosta e passo pela oficina. Qual “cirurgia a céu aberto”, encontro a Miss Índia completamente desmontada, o que não me preocuparia, não fosse uma pancada na colocação de um eixo novo partir a corrente. Perante um cenário caótico de trauma e tentativa de colocação de próteses por metodologia arcaica, decido virar costas. Tenho a Zinha, uma menina de 1 mês e 1680 gr à minha espera.

A Zinha nasceu saudável. 2600gr, fruto de uma gravidez sem complicações. Por motivos desconhecidos, perdeu peso ao longo do primeiro mês, tendo chegado a uma situação de desnutrição grave. É agora seguida no Centro Nutricional diariamente. Hoje está mais desperta, mais interactiva, suga o leite em poucos minutos. Ainda será uma grande mulher.

Já marcaram as 17h nos telemóveis que têm bateria [os únicos artefactos que, nesta terra, teimam em marcar o tempo] e o sol aproxima-se do horizonte. Regresso à oficina na esperança de trazer a bicicleta como nova. Encontro ainda o Mestre de chave de fendas na mão e concentração expressa no rosto. Observo os seus movimentos: martela na corrente e coloca  um elo, ensaia na pedaleira… ainda está pequeno. Desmonta, acrescenta dois elos, torna a montar, mais martelada, menos martelada… de novo ensaia na pedaleira, agora está a corrente grande de mais…

Alguém percebe a minha impaciência:
- Irmã, ele é o Mestre. Há-de conseguir arranjar isso aí.
- O que me vale é que estou rodeada de mestres de obras feitas – respondo-lhes em tom de brincadeira. Riem-se.

Com isto já o sol tinha dado lugar a um luar quarto--crescente, cuja luz não era suficiente para continuar trabalhos de tanta precisão, e ninguém – nem mesmo eu, estava disposto a ir buscar uma lanterna a casa [Mitande continua sem electricidade pública]. Voltaria no outro dia e tudo se resolveria. A Miss Índia acompanhou-me durante mais um mês sem sintomatologia preocupante, grata pelo trabalho do Mestre.

E grata fico por viver este mês de grande crescimento, de novo nesta terra que foi, em tempos, uma estação de comboios estratégica para as negociações entre Moçambique e Malawi, e que hoje se reabilita e aspira a ascensão a distrito. “Não existem sonhos grandes demais” escreveu Raoul Follereau em 1929, e mais uma vez ousei sonhar e partilhar um pouco da minha vida com aqueles que dão toda a sua vida. Um obrigada muito especial à APARF e a todos os benfeitores que, de tantas formas, contribuem para deixar o mundo um pouco melhor. Graças a vocês é possível, pois “nunca estamos sós quando conservamos um sonho por realizar” [R. Follereau,1930].

Fátima Santos



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