Um desafio: Cumura, Guiné-Bissau

Muitas pessoas perguntam-me qual é a minha motivação por África… Eu não sei explicar, acho que me está no coração (eu também lá nasci!), é tão profundo quanto inexplicável. Como qualquer amor verdadeiro não passa, cresce. Sei, no entanto, que gosto de aliar o prazer de viajar (conhecer outras culturas, terras e pessoas) dando um pouco de mim, do meu trabalho e conhecimento. Em troca recebo tanto!... Esta oportunidade surgiu quando, há cerca de um ano, no curso de Fontilles (de Lepra) conheci uma médica voluntária que já tinha estado em Cumura. Precisavam lá de alguém na farmácia do hospital. Agarrei a oportunidade!

A Missão Católica Franciscana onde estive situa-se em Cumura (terra maldita, em dialeto local), pequena localidade nos arredores de Bissau, que cresceu à volta do Hospital.

O Hospital do Mal de Hansen (lepra, a doença maldita) é uma referência em África e acolhe doentes de países vizinhos como Senegal e Guiné-Conacri. Hoje em dia, o internamento dos leprosos está limitado a situações agudas da doença, vivendo a maioria com as suas famílias. No entanto, a Missão dispõe duma aldeia onde são acolhidos todos os que ainda são marginalizados. 

Como a população possui carências alimentares importantes, são ainda distribuídos géneros alimentares (PAM – Programa Alimentar Mundial) e apoio para alimentação infantil de desnutridos (Programa da UNICEF). Regularmente, uma equipa do hospital desloca-se às aldeias (tabancas) para reavaliar a continuidade das crianças no programa.

Ultimamente, o hospital desenvolveu outras valências mais prementes e assiste doentes com tuberculose e HIV positivos. Conta ainda com ambulatório, internamento geral, maternidade (realiza em média 150 partos por mês!) e pediatria. O laboratório e a radiologia dão o apoio necessário à laboração do hospital.

A comunidade religiosa conta com quatro irmãs (uma guineense, uma brasileira e duas italianas) e cinco frades (um português, um guineense, três italianos), que além das suas responsabilidades na comunidade, são quem acolhe amável e fraternalmente os voluntários do hospital. A instituição possui uma rede diversa de voluntários, principalmente portugueses, italianos e espanhóis, que além de áreas médicas (como oftalmologia, medicina interna, cirurgia, ginecologia, entre outras) colaboram na construção e conservação das instalações e equipamentos, bem como, na implementação de sistemas informáticos. Eu fui a primeira voluntária em Cumura a prestar apoio à farmácia do hospital.

Os serviços farmacêuticos do hospital são constituídos pela farmácia e dois pequenos postos. Um está localizado no hospital geral e dispensa a medicação para o ambulatório, internamento geral, maternidade e pediatria. O outro posto está localizado na área das doenças infecciosas e dispensa gratuitamente a medicação para os doentes de lepra, sida e tuberculose. Estes medicamentos são fornecidos pelo Estado, embora a missão tenha que contar com atrasos na entrega dos mesmos e, por isso, providencie stock para que os doentes não tenham que interromper a terapêutica.

O trabalho que desenvolvi durante a minha estadia consistiu no seguinte: dar formação básica de farmacologia aos dois funcionários da farmácia (o Mário e o Elísio); colaborar na construção inicial dum programa informático para a gestão da farmácia do hospital; acompanhar os funcionários na dispensa de medicação concomitante (para doenças oportunistas) para os doentes com HIV, tuberculose e lepra seguidos pelo hospital, e ainda, ajudar na arrumação da farmácia. Infelizmente, ainda muito ficou por fazer…

Foram várias as histórias de vida que me impressionaram, num país cheio de tradições e costumes a que não estou habituada. 

Uma história muito forte que vivenciei foi a do Muamed. Era um rapaz de 13 ou 14 anos. Estava internado no hospital pediátrico, tinha chegado a Cumura alguns dias antes, vindo do principal hospital de Bissau. Este menino encontrava-se internado no hospital Simão Mendes há 3 anos. Tinha sida e tuberculose, mas ainda não tinha iniciado a terapêutica antirretroviral. Abandonado pela família, os pais já tinham morrido e a irmã não o visitava, encontrava-se deprimido. Começou a fazer a terapêutica antirretroviral e antidepressivo mas, entretanto, recusava-se a comer, mais tarde a tomar a medicação. As mães dos outros meninos ajudavam a alimentá-lo, mas era visível o seu sofrimento e desânimo, praticamente não falava e os olhos denunciavam a sua desesperança. Um dia fui visitá-lo à enfermaria e levei-lhe umas bolachas para ver se ele comia alguma coisa. Foi trincando uma a custo, só para não me fazer a desfeita. Enquanto eu conversava com ele, a tentar animá--lo, disse-me simplesmente ‘senta’ ao mesmo tempo que apontava com a mãozita o local na cama onde eu o podia fazer. Fiquei tão emocionada que mal consegui disfarçar! Ele sentia-se tristemente sozinho! Fiquei lá mais um pouco. Mais tarde deixou mesmo de comer e teve de ser posto a soro. Pediu para voltar ao hospital Simão Mendes, afinal era onde tinha os poucos amigos que lhe restavam e, provavelmente, aonde se sentia melhor. Alguns dias depois de ele ter sido para lá transferido soube que tinha falecido. Ainda hoje me vêm as lágrimas aos olhos quando me lembro do Muamed e da sua tristeza!

E valeu a pena? Valeu, valeu a pena por mim, que gosto destas andanças, de dar um pouco e receber muito mais, conhecendo outras culturas, fazendo novos amigos. Valeu pelos rapazes que trabalham na farmácia do hospital, que me receberam com muito carinho e interesse e também pela Ângela, que ganhou além duma ‘madrinha’ uma amiga para a vida que se vai preocupar em colaborar no seu crescimento e rezar por ela.

A todos que contribuíram para este projeto, pela dispensa de livros, medicamentos, material técnico, informático e outro para formação e diagnóstico, à APARF pelo seu apoio incondicional o meu muito obrigada. Aos de lá, muito obrigada por me acolherem.

Ao jeito da Missão Franciscana: Paz e bem!

Marta Faustino

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