INSTANTES DA ZAMBÉZIA

Conheci a Zambézia pela primeira vez em 2004, numa viagem com a Irmã Lurdes, a superiora da missão de Iapala, uma vila maravilhosa no coração de Nampula, para onde eu tinha ido trabalhar como médica voluntária. O distrito mais pobre da Zambézia e um dos mais pobres do país, o Gilé, era o lugar onde a Irmã Lurdes ia fundar uma nova missão. Como era possível alguém deixar Iapala?, pensava eu na altura. Ainda hoje não sei como foi que ela teve coragem de deixar Iapala, a montanha mágica de Nampula, para ir para um desterro como aquele. No Gilé não havia água canalizada, nem luz eléctrica, nem bombas de gasolina. Não havia pão para o pequeno-almoço nem ninguém que o soubesse fazer. Quase não havia comércio. A feira era uma vez por mês. Se quiséssemos comprar carne ou legumes, ou outros géneros alimentares era quase impossível. E então se precisássemos de um biberão para uma criança desnutrida, ou até de uma simples capulana, era melhor nem pensar. Só se se “apanhasse muita sorte”!

Aquele fim de mundo ficava a 8 horas de viagem durante a estação seca e não se podia fazer o caminho durante as chuvas porque não se encontrava combustível pelo caminho e as estradas ficavam quase intransitáveis... As Irmãs não iam ter sequer uma casa onde viver, iam acotovelar--se num anexo da casa dos padres... Como era possível alguém acreditar que ia poder fazer alguma coisa a partir de menos que zero? 

Mas a Irmã Lurdes era inamovível. Ia para Gilé. Se era para lá que Deus a mandava, era para lá que iria! E haveria de construir uma casa, uma missão, um lar para as meninas mais pobres, nem que fosse com as pedras que se atravessassem no caminho. E eu também fui nesse dia, para ver o que a esperava. Para pelo menos poder rezar por ela...

O propósito da viagem era assinar os contratos das Irmãs que haveriam de dar aulas na escola secundária, visitar os padres da missão, acertar os últimos preparativos para a mudança e não havia tempo para muito mais, que a viagem de regresso era muito longa. Mas por qualquer razão que só o destino sabia e que hoje faz tanto sentido, fui ao hospital nesse dia. Sempre gostei de fazer turismo hospitalar, mas dessa vez só fui porque o director da escola onde as Irmãs iriam trabalhar, assim que ouviu que as Irmãs vinham com uma médica, me pediu para lá ir ver o filho que estava internado. O senhor mal conseguia falar de tão emocionado e preocupado que estava com a doença da sua “primeira sorte” e, assim que conseguimos que ele rabiscasse com letra trémula os dois contratos, metemo-nos no carro, rumo ao hospital onde estava a criança. Achei o hospital absolutamente encantador, com as suas enfermariazinhas pequeninas de dois ou três doentes que pareciam casinhas de bonecas, redondas, paupérrimas, com uma míngua de recursos e de conhecimentos absolutamente avassaladora. 

Entrei na enfermaria onde estava o menino e deparei-me com uma criança de dois anos, prostrada, a arder em febre, no colo de sua mãe lindíssima, que lentamente lhe massajava a barriga com óleo aquecido para o aliviar dos espíritos malignos que lhe mordiam a barriga por dentro, enquanto o olhava nos olhos. Uma imagem inesperadamente tranquila, quase de uma pintura de outros tempos... Foi nesse momento que tive o primeiro pressentimento de que afinal talvez pudesse um dia trabalhar ali. A Irmã Lurdes já o tinha tido noutro local tempos antes. Falou-me depois do sofrimento silencioso das pessoas, da esperança e da resignação do povo que tinha visto na primeira manhã da sua visita ao Gilé e da força com que essa imagem se prendera à sua vocação missionária... São momentos que mudam as nossas vidas.

Observei o menino, que tinha uma gastroenterite bacteriana, nada mais. Precisava “apenas” de um soro e de um antibiótico. Um tratamento absolutamente básico, mas que não estava a ser feito. O pai tinha toda a razão em temer pela vida do filho... fui ter com os enfermeiros, que alegremente descansavam, conversando debaixo do cajueiro. Sentei-me com eles a conversar, apresentei-me, pedi-lhes delicadamente para colocarem um soro ao menino e perguntei-lhes se tinham o antibiótico indicado para aquela situação. Não o conheciam, mas disseram que sim. À cautela escrevi--o num papel que dei ao pai, para ele poder depois confirmar se lhe estava a ser feita a medicação.

Anos depois, numa outra visita ao Gilé, o director da escola soube que eu estava novamente na vila e levou-me o filho para me mostrar como estava lindo e enorme!

- Sabe, Doutora, eles não tinham aquele medicamento. Eu tive de ir a Quelimane, a 400 km daqui, para ir comprar o antibiótico para o meu filho e só depois é que ele começou a melhorar...

Na mão trazia-me um embrulho minúsculo em papel de jornal. Nem o abri à frente dele, embevecida que estava por o menino não ter medo de mim e até me querer saltar para o colo a sorrir (é tão raro não estranharem uma mulher sem cor de pessoa...). Só quando saiu me lembrei do embrulho. Era uma pequena pedra vermelha, tosca e com uma forma bruta. Um rubi das minas que ficam perto.

Patrícia Lopes (médica)

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