MOÇAMBIQUE. VENHAM TAMBÉM!

Tenho um pequeno apontamento escrito em Maio, no diário de bordo onde vou anotando o meu dia-a-dia, na ilusão de que assim talvez um dia seja mais fácil não me perder na trama de acontecimentos que vão tecendo a vida que se me escapa a cada momento. 

Estou prestes a explodir... Não sei se aguento muito mais as saudades do país onde os embondeiros nascem com as raízes voltadas para cima, cumprindo um castigo milenar de Muluku - o deus dos antepassados - onde o sol rompe de manhã vindo das águas mornas do Índico e se põe ao fim da tarde sobre a savana... a terra onde posso chorar mais perto do céu a perda do meu filho adoptivo. É que eu quando choro, choro sempre com o corpo todo e quando tomo uma decisão vou junta com ela. Se um dia destes me for embora já sabem para onde fui... 

E agora, dois meses depois, posso anunciar que vim mesmo, graças à APARF, matar saudades desse país que não é o meu, mas que quero à viva força que não cresça sem mim! Se alguém alguma vez pensar que se pode viver em Moçambique uma experiência do tipo Seen it, done it, got the t-shirt, desengane-se. Não se volta ileso.

Eu sei que nunca vos contei a história desta paixão por Moçambique, mas a verdade é que duvido que o consiga... A história é agora tão complexa e tão longa que sempre que a tento contar me contradigo. E quando, por vezes, lá acerto, sou invariavelmente mal citada… Para isso acho mesmo que era preciso fazer como Gabriel García Marquez: vivir para contarla. E não foi para contar histórias que um dia decidi ser médica. Por isso o que vou fazer para Moçambique é trabalhar num hospital no meio do mato, na Zambézia, e cuidar dos doentes de lepra e das crianças que precisarem de mim. Ainda assim, se me forem sobrando histórias no meio de tudo o que for acontecendo, prometo que as partilharei com quem as quiser ouvir... 

Só que desta vez estive aqui a pensar e resolvi lançar-vos um desafio: virem comigo... Sim, estou a fazer-vos um convite a sério! Asseguro-vos de que não é difícil. Difícil, difícil mesmo em qualquer expedição a Moçambique é chegar à Portela (bem, e ultrapassar a parte do aeroporto de Mavalane também não é fácil, mas isso são outros quinhentos), a partir daí, já com licença sem vencimento para interromper o trabalho por cá, já com vistos, carimbos no passaporte, autorizações para trabalhar no país, autorizações para conduzir, autorizações para circular, Moçambique conjura-se para que tudo nos corra bem. As pessoas são naturalmente quentes e afáveis e nunca vi país mais bonito e fotogénico. Tudo transpira largueza, com cheiro a espaço aberto e vistas desafogadas. As músicas são alegres e ritmadas, os batuques acompanham o pulsar do coração das gentes, não há música que se cante a menos de três vozes e a harmonia é facílima de apanhar. E as danças... bem, lamento mas essas não vo-las posso ensinar... Por cem anos que viva não tenho a menor hipótese de as aprender, mas são de encher a alma de quem as vê!

Vá, animem-se, fechem os olhos e deixem-se vir cá ter... Não se preocupem que ninguém vos vê, mas tenham cuidado que agora vamos entrar na savana e os espíritos e os animais podem pressentir a vossa presença... A partir de agora as regras são diferentes. Os macuas têm um provérbio que nos ensina que “quando se chega ao oceano, as leis do rio deixam de servir” e esta é uma lição de vida deliciosamente verdadeira. 

A partir de agora pisem só onde eu pisar, não se afastem do caminho. Não há minas anti-pessoais, garanto--vos, o país tem uma sólida paz de vários anos e está todo desminado, mas podemos encontrar cobras e não quero que vos aconteça nada. Não passem por baixo dos cajueiros, sobretudo se não ouvirem passarinhos cantar. Se passarmos perto de um embondeiro procurem um monte de farinha e se lá estiver algum, por favor, não o pisem porque foi oferecido aos antepassados numa cerimónia muito intensa e difícil. É preciso ter muito respeito pelos pedidos de protecção e saúde que ali foram feitos. E nós só estamos aqui porque os antepassados no-lo permitiram. Ah, não sorriam. Não acreditam? Pois digo-vos que não se consegue trabalhar aqui se não respeitarmos e conhecermos as crenças das pessoas com quem vamos conviver. De outro modo não vimos cá fazer nada, só nos vamos deprimir porque nesse caso falar com as pessoas será como falar com uma parede.

Mais adiante vamos passar por um curso de água. Temos de o atravessar com muito cuidado pelas pedras que estão à sombra porque os crocodilos são animais de sangue frio (poiquilotérmicos, eu sei, deixem-se lá de preciosismos que já não temos muito tempo) e preferem o calor, mas mesmo assim todo o cuidado é pouco. E nem pensem em entrar na água. Nem molhar os pés sequer. Aqui a schistosomíase abunda e depois não tenho como vos tratar a todos. E insisto, a não ser que oiçam os passarinhos cantar não passem por baixo dos cajueiros porque lá em cima estão de certeza várias cobras. Mas as precauções são simples se as mecanizarmos desde o primeiro dia. O prazer de andar pelo mato supera tudo isto, podem ter a certeza.

Mas venham comigo, não deixem de vir... Não é tudo fácil, vocês sabem. Só há rede de telemóvel de vez em quando, a internet anda incrivelmente instável em todo o país desde que danificaram os cabos submarinos de fibra óptica ao largo de Gaza e a electricidade depende quase toda da barragem de Cahora Bassa, o que quer dizer que tem oscilações que ameaçam diariamente pegar fogo a qualquer aparelho incauto que esteja ligado à corrente. Ah, e podemos passar dias inteiros sem electricidade, portanto temos de ter gerador próprio na mesma, porque se não corremos o risco de ficar sem luz no bloco operatório ou estragar todo o stock do banco de sangue, que tanto nos custou a angariar (não se esqueçam de que estamos num país onde todos se alimentam mal e a anemia é a regra geral, portanto dar sangue é um esforço quase sobre-humano e temos de ter muita estima por aquele ouro vermelho que todos os dias salva vidas). E obviamente não estão à espera de ter água canalizada todos os dias, pois não? Mas lá em casa temos um bom filtro, portanto a água é perfeitamente potável. E tomar banho com um balde e um copo é simples, não se façam de esquisitos! Muita sorte temos nós por não termos de ir ao rio tomar banho. 

Vá, venham comigo! O país está à nossa espera, as pessoas precisam da nossa ajuda e há tanto que fazer… 

Patrícia Lopes
Médica


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