Merecido

Conheci o Merecido, criança órfã de mãe, em 24 de Fevereiro deste ano, ou seja poucos dias após o recomeço da minha actividade no Hospital do Marrere.

Desde essa data, tenho acompanhado as diversas vicissitudes desta criança órfã, que retratam o sofrimento que atinge a maior parte das 36 crianças órfãs. Este grupo representa (21.8%) das crianças que frequentam a Consulta da Criança de Risco.

O Merecido, nasceu em 17.10.09, perdeu a mãe quando tinha apenas três meses de idade, a família veio solicitar ajuda para criar a criança. Desde essa data tem sido apoiado com leite adequado às suas necessidades. O pai é deficiente motor, desloca-se num triciclo movido à força de braços, costumava acompanhar a familiar que cuidava da criança. A tia no início cumpria regularmente as nossas indicações. Após um período de hospitalização para tratamento de malária no mês de Março, a tia solicitou alta, levou a criança para casa. Provavelmente as preocupações com o cultivo da terra, ou os cuidados com as suas próprias crianças motivaram a alta a pedido. Em sua substituição o pai apareceu uma ou duas vezes, para levar o leite necessário. Após um período prolongado de ausência, a tia regressou à consulta com o bebé, o qual vinha novamente doente, emagrecido e faminto. Tratava-se de uma situação extremamente grave e por isso foi de novo hospitalizado para tratamento de mais um episódio de malária. Teve alta em 24 de Maio, e eu anotei o seguinte na minha folha de registos: alta da pediatria, manutenção do tratamento com quinino oral, abcesso nadegueiro, abdómen duro e doloroso e diminuição de peso. Honestamente, pensei que nunca mais veria o Merecido com vida tendo em atenção o seu estado ainda tão grave e a negligência da própria tia. Foi-lhe recomendado que deveria voltar ao controle da sua situação dentro de uma semana. Ficámos a aguardar o desenrolar da situação, esperando diariamente pelo seu regresso tal era a nossa preocupação. No início do mês de Junho, a criança reapareceu desta feita acompanhada por uma menina, que é uma das suas irmãs. Esta condoída pelo estado do irmãozinho, pegou nele e trouxe-o à consulta. Investigada a situação foi-nos relatado que o Merecido tinha sido arrancado ao pai pela tia e depois tinha-o abandonado estando agora entregue ao cuidado dos irmãos. Solicitámos a comparência de um familiar idóneo para esclarecer bem a situação. Na vez seguinte, apareceu uma senhora, que estava casada com irmão do pai destas crianças. Em sua opinião, era um assunto que dizia respeito ao lado materno da família, e portanto ela estava fora da questão.

No dia 28 de Junho, um rapazinho de mais ou menos 12 anos, apareceu no nosso gabinete trazendo apenas o cartão individual de saúde do Merecido, para lhe fornecermos os produtos habituais. Como não sabíamos nada da criança em causa há mais ou menos três semanas e sendo norma da consulta não disponibilizar quaisquer géneros sem a presença da criança, aquele foi de volta de mãos vazias. Para nossa surpresa, o Telmo, apareceu no final dessa manhã, carregando o irmãozinho nas costas à maneira tradicional africana. Contou-nos então, que tinha chegado de bicicleta após ter feito uma autêntica maratona até ao local onde vive, ter pedido uma bicicleta emprestada, ter mobilizado a irmã para carregar o irmão durante a viagem. Foi o protagonista de um acto de amor verdadeiramente notável, que nos deixou profundamente sensibilizadas pela sua dedicação, dando assim uma grande lição aos adultos da família.

O menino, assim que me viu preparar o biberão, não mais tirou os olhos daquele artefacto que lhe iria mitigar a fome, que já durava há muitos dias. Reclinou-se no colo do irmão, empinou o biberão em ângulo recto para mais facilmente devorar o leite que há muito lhe faltava. O Merecido devido a estas andanças, troca e negligência de cuidadores, e ainda os diversos episódios de malária, tem o peso que tinha em Fevereiro, ou seja 5800 e ainda um atraso de desenvolvimento importante. Imaginam o que é duas crianças entre os 9 e os doze anos serem forçados a tomar conta de um bebé de 9 meses? Esta é uma realidade muito dura para todas estas crianças, que são forçadas a tomar cuidado de outras crianças, tornando-se adultos à força e enfrentando problemas gravíssimos. É caso para pensar nas motivações que levaram os pais a dar-lhe o nome de Merecido! Parece que afinal o Merecido se tornou num ponto de discórdia entre os familiares, os quais lhe teceram assim um futuro bem imerecido.

Eugénia Ferreira (Enfermeira Voluntária)


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