Dia Internacional da Enfermeira

A empregada de serviço à copa, onde logo pela manhã fui ferver água para preparar os biberões da urgência da fome, lembrou-me que hoje era o “dia da enfermeira”. Tomei consciência desta efeméride, nada relevante aqui no hemisfério Sul, onde a enfermagem está ainda na pré-história. Sem desfile organizado, sem capulana, o dia da celebração passou-nos completamente ao lado. Além daquela referência não me apercebi de qualquer alusão ao facto durante a manhã.

Eu passei a minha longa manhã de trabalho, recebendo as crianças com consulta marcada para este dia. São provenientes de um meio totalmente desfavorecido, sendo os mais pobres dos pobres. Vêm de muito longe, empreendendo longas caminhadas em busca de alguma atenção para os seus problemas. A maior parte delas chegam doentes com as habituais queixas, diarreia, febre, tosse e constipação. A desnutrição, que as apoquenta, raramente é sentida como um grave problema no seio das famílias. De modo que o panorama é mesmo muito mau. Hoje atendi 36 crianças.

O dia começou de um modo muito triste. Um bebé de dois meses recebeu como herança da sua mãe o vírus HIV, devido à sua atitude negligente durante a sua gravidez. Foi diagnosticada como seropositiva na consulta de Prevenção da Transmissão Vertical, mas depois refugiou-se no medo e ainda nas crenças relativas a esta doença. Não fez mais vigilância, acabou por ter a criança em casa, resultando daí uma criança infectada que não irá sobreviver muito tempo. Mais uma nascida para sofrer, penso eu com os meus botões. O drama destas crianças nem sequer é vivenciado pelas próprias mães, pois não têm consciência da gravidade do problema e do prognóstico reservadíssimo para a criança. Na segunda-feira uma mãe, numa situação muito idêntica a esta, declarou que de facto tinha sido informada da doença, mas achou que após o nascimento da criança ficaria livre da doença. Ou seja, como era uma doença da gravidez, esta terminaria com o nascimento da criança. Incrível não é? Poderia contar-vos muitas histórias relacionadas com a ignorância, com as crenças que fazem com que esta doença esteja sem controlo. Este ano já foram inscritas na nossa consulta 123 crianças, filhas de mães seropositivas. A semana passada foi péssima pois diariamente diagnosticávamos crianças com HIV. Vinham referenciadas da sala de pesagem por má nutrição, mas a sua causa era a infecção que lhes estava a minar o corpo, tornando-as muito vulneráveis e sofredoras.

A manhã ficou ainda marcada por mais uma criança órfã. Veio trazida por uma tia, envolta em capulanas completamente encharcadas em chichi. A criança nasceu em casa no dia 8 deste mês e a mãe faleceu no dia 10 em casa. Foi impossível obter quaisquer dados acerca do facto, pois não conseguimos romper o mutismo desta senhora. Ficámos a desconhecer as circunstâncias que rodearam esta morte de uma mulher de 36 anos, que deixa 6 crianças órfãs. Bom, como o bebé necessita de leite para sobreviver, ficou inscrita na nossa lista de crianças que estão a receber ajuda alimentar através deste projecto. Com esta nova inscrição atingimos o número de 199.

Terminei a minha manhã assistindo a distribuição da sopinha, que foi confeccionada por um grupo de mães, como forma de demonstrar como fazer em casa. A maior parte comeu com satisfação. Depois distribuí 28 kits de papinha (um kilo de farinha de milho, um kilo de açúcar, 250 cl de óleo, 12 embalagens de 900 gramas de leite em pó completo, 12 embalagens de Lactogen 2. Todas saíram com consulta marcada para o próximo dia 26 deste mês. 

Almocei por volta das 14 horas, sozinha pois todos os outros já tinham tomado a refeição. Foi mais um dia muito duro para uma enfermeira aposentada, em missão de voluntariado ao serviço destas crianças tão dramaticamente atingidas pela doença, fome e pobreza. Assim dou este meu testemunho de um serviço de enfermagem que se destina a satisfazer o direito a não ter fome. 

Sinto-me privilegiada por estar a prestar este serviço. Beijinhos a todos(as) da amiga Eugénia.

Eugénia Ferreira (Enfermeira voluntária em Moçambique) 

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