SENHORA DO LEITE

Estou em vésperas de regressar ao torrão natal. Em jeito de despedida deste sítio magnífico, envio-vos mais uma das minhas histórias.

Estava uma manhã bastante fria, como é normal no hemisfério sul, no mês de Junho. As crianças vinham nuas, mas envoltas nas tradicionais capulanas. Os pais pareciam ainda muito jovens e vinham em busca de ajuda para mais um acrescento à família, pois tratava-se de mais um par de gémeos na minha consulta. Ouço as preocupações, os motivos porque se tinham dirigido ali. Ouço atenta e calmamente, pois o momento requer sempre algum tempo, como que a facilitar a descompressão de tormentos gerados pelo nascimento de mais um par de crianças para alimentar. Solicito os cartões individuais dos bebés e constato que as crianças tinham nascido a caminho da maternidade. No entanto, sensatamente os pais levaram as crianças ao Centro de saúde mais próximo e foram depois transferidas para o berçário do Hospital Central onde permaneceram durante uma semana.

-“Qual delas é o primeiro gémeo (dois rapazes) e como se chama?”
-“É este mais forte”, diz-me o pai.
-“Então e o nome?”
-“Ah! Esse é o Saúde e o outro é o Sorte.”
-“Oh papá!” – diz-lhe a Elisa (enfermeira local), antecipando-se ao meu comentário – “Mas isso é mesmo nome de criança? Achas que vão aceitar no registo?” Penso com os meus botões! Se fossem trigémeos só faltava um deles chamar-se Dinheiro, para completar o triduo que a maior parte de nós ambiciona ter – Saúde preciosa sempre, Sorte dá sempre jeito e claro Dinheiro também não enjeitamos, não é verdade? Aqui têm o costume de colocar o mesmo nome variando apenas o género. Assim no meu registo existem a Selma e Selmão, Delmácio e Dalmácia, Orlando e Orlanda, Amisse e Amizade, o Juvêncio e Juvência, Silêncio e o Femêncio, mas uma dupla destas ainda não me tinha saído na rifa. Há ainda nomes tão estranhos como Garota, Nokia, Sexta, Sábado, Milagre, Rodinha e outros que são uma mistura de macua com muçulmano que são impronunciáveis. Nesta colecção não podia deixar de haver uma Vanessa e Mariza.

Passado este momento hilariante o pai decide que se chamariam Aquiba e Equibal, respectivamente.
Então  papá, onde fica o seu bairro?

“Irmã!..., é lá em Namitatare”.
“Mas isso é mesmo muito longe”, digo-lhe pois já tenho algum conhecimento de geografia do distrito de Nampula.  
“Sim é lá... á… á… (apontando na direcção) na via de Caramaja”. Lá é um advérbio de lugar, mas aqui quando entoado de forma prolongada quer significar que é muito longe.
-“Então e como tiveram conhecimento de que se poderiam dirigir aqui e não ao centro de saúde da Caramaja?”, quis eu saber. 
“Irmã”, fomos ditos, para vir aqui ao Marrere porque havia uma senhora que dava leite quando as crianças estavam necessitadas.

A Elisa, colega moçambicana, interroga-o sobre se vai poder vir duas vezes por mês com as crianças ao controlo, pois melhor do que eu conhece muito bem as características do seu povo.
“Hei-de vir”, diz o pai!

Bom, após estas considerações, continuo a minha tarefa de avaliação das crianças, colhendo informações para averiguar da necessidade de dar um suplemento com leite artificial, já que tinham rumado até à “Senhora do Leite”. Peço à mãe para colocar a criança mais débil ao peito. Compreendo de imediato as dificuldades. A criança adormecia ao peito e por isso o pai dizia que “não apanhava nada” porque o leite não saía. Lá me esforço nas minhas estratégias de acordar o bebé, de o fazer sugar na mama da mãe que derramava leite espontaneamente.

Segundo informações do marido ela tem 31 anos e agora atingiram o bonito número de nove filhos em casa. Mais uma vez a Elisa intervém para questionar o homem.

“Mas, papá porque não deixas a tua mulher fazer planeamento familiar? Como é que vais dar comer, roupa e educação a tantas crianças questiona ela? Como vais conseguir?” O pai confessa que de facto “está à rasca “ com dificuldades em alimentar tanta boca. O dinheiro não entra em casa pois o pouco que tem gasta-o com os bens essenciais.

Então não tendo mais argumentos a seu favor vai dizendo que não tem emprego que tem pouco que fazer e por isso o seu serviço é “fazer filhos”. Assim tal e qual, como se nos estivesse a falar do cultivo da machamba. Bonito serviço penso eu! Em vez de ser professor, enfermeiro, técnico, empregado público ou de uma empresa, pedreiro ou carvoeiro é “fazedor de crianças” contribuindo assim para o produto interno bruto do País. Como diz a Elisa – “este meu povo, não vale a pena!”

Resta dizer-vos, acerca deste encontro com esta família africana, que a mãe das crianças nunca se queixou das dificuldades, nunca emitiu a sua opinião. Manteve-se de boca calada todo o tempo, cabeça baixa, pois nesta sociedade a mulher não tem quaisquer direitos, estando-lhe reservada a tarefa da procriação, de carregar e cuidar os filhos e trabalhos no campo.

RELATÓRIO
A Consulta de Criança de Risco, tem como objectivo atender crianças que merecem uma atenção especial na sua vigilância e controle. Os riscos que ameaçam estas crianças estão relacionados com a má nutrição e ou HIV - SIDA. Estes dois problemas que afectam a vida de muitas crianças, podem aparecer isolados ou em simultâneo. A má nutrição é a terceira causa de morte infantil em Moçambique e é uma das manifestações mais frequentes de infecção com sida. 

Por estas razões a minha acção centra-se em duas áreas: combate à desnutrição e apoio na prevenção da transmissão vertical do HIV através do aleitamento materno. 

A desnutrição afecta as crianças por diversas razões Uma grande percentagem das crianças nasce, já com baixo peso, uma vez que as próprias mães durante a gravidez sofreram de carências de alimentação. Os períodos de escassez de alimentos (Novembro a Março) em que toda a família sofre com a fome, atingem particularmente as crianças. Privados de alimentação adequada em quantidade e qualidade, sobrevivem com uma escassa ração de leite materno até aos seis ou mais meses de idade. Estas aparecem na consulta por volta do ano de vida com situações de desnutrição moderada ou grave. Muitas delas nunca ingeriram alimentos sólidos, o que exige uma intervenção de longa duração para a aprendizagem da alimentação. 

Outra das ameaças resulta das situações de orfandade (18 crianças) e das gravidezes gemelares (22 neste grupo) ou ainda pouco espaçadas. A perda dos pais biológicos é uma situação muito frequente devido a grande prevalência de malária, tuberculose, sida, cólera e outras doenças que vitimam muitos adultos e que contribui para a diminuição da esperança média de vida. Aquelas crianças órfãs ficam entregues aos familiares e estes não dispõem de recursos financeiros para adquirir o leite necessário para alimentar a criança. 

Eugénia Ferreira



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