Emergência silenciosa

As crianças são um dos grupos mais vulneráveis dos países subdesenvolvidos ou em vias de desenvolvimento. São vítimas de diversas ameaças entre as quais a fome, as doenças infecciosas, a desnutrição e a orfandade, e por isso são, indiscutivelmente quem mais sofre. Devido à desnutrição crónica ficam com a sua saúde debilitada e com défice de aprendizagem para o resto da sua vida, tornando-as por isso seres humanos muito debilitados e incapazes de romper o ciclo de pobreza que passa de geração em geração. 

É neste contexto social e económico que tenho vindo a desenvolver acções de voluntariado, numa consulta de Criança de Risco num pequeno Hospital numa localidade na periferia da cidade de Nampula. 

No período em que ali permaneci, várias crianças foram referenciadas para o nosso gabinete de trabalho, solicitando apoio nutricional. Desde Janeiro até final do mês de Julho foram inscritas na consulta 197 crianças, das quais 95 tinham idade inferior a um ano. Neste grupo etário estão incluídos alguns órfãos, muitas crianças gémeas e ainda crianças filhas de mães seropositivas. O número de crianças que perderam um dos progenitores, mais frequente a mãe, tem vindo a aumentar causado pelas doenças mais prevalentes na população que provocam elevada mortalidade como sejam a Sida, tuberculose, malária e cólera. Nestas situações a maior parte das crianças está dependente exclusivamente de leite. Fornecemos sempre a cada uma das mães um biberão e a tetina, um termo para guardar e conservar a água fervida, o leite adequado, algumas fraldas e um par de cuecas de plástico. Torna-se sempre imprescindível a demonstração da reconstituição do leite, a demonstração da técnica de dar o biberão, porque a maior parte delas é a primeira vez que contacta com estes objectos, sendo por isso difícil a sua manipulação. Por outro lado, uma grande percentagem das mulheres que cuidam das crianças é analfabeta, o que exige uma grande atenção para nos certificarmos de que em casa serão capazes de preparar correctamente o leite para as crianças. Deste grupo de 95 crianças, 69 tinham muito baixo peso para a idade, ou seja, eram crianças de desnutrição grave ou moderada.

As restantes 102 crianças tinham idade superior a um ano. A grande maioria deste grupo (95) sofria de desnutrição grave. Salientamos que neste grupo estão incluídas 24 crianças doentes de HIV Sida em tratamento, pois frequentemente a desnutrição severa é uma das primeiras manifestação da doença. Uma das actividades de maior relevo reporta--se ao reforço das competências das mães na confecção de papinhas enriquecidas. São utilizados produtos da produção agrícola local (milho, batata doce, amendoim, legumes) com o objectivo de posteriormente em suas casas serem capazes de as confeccionar e alimentar os seus filhos. Foram realizadas 46 sessões de demonstração de confecção de papinha enriquecida com diversos produtos. Neste momento duas mães que frequentam a consulta de Criança de Risco e que são formadoras dos seus pares asseguram com êxito esta tarefa. Esta estratégia tem produzido muito bons resultados pelo facto de elas conhecerem muito bem os problemas ligados à melhor utilização dos produtos, as dificuldades em os adquirir, as crenças que envolvem o uso de alguns produtos (por exemplo a papaia produz conhunho), ou seja uma doença tradicional, muito comum e ainda pelo facto de serem parte integrante do grupo de crianças de risco. Só no final da distribuição da papinha a todas as crianças e de verificarmos o seu grau de aceitação, é que se distribuem os produtos (um quilo de farinha, um quilo de açúcar e meio litro de óleo) para reconstituírem em casa tudo o que aprenderam nas sessões e alimentarem a criança durante duas semanas. 

A avaliação das crianças é feita regularmente (quinzenalmente). Nesta consulta pesamos e medimos a criança, registamos as ocorrências de episódios febris ou outras complicações, damos reforço positivo quando as crianças aumentam de peso, reforçamos o ensino de medidas de higiene e de alimentação (modo de preparação e nº de refeições). 

Saliento que das 69 crianças com idade inferior a um ano que sofriam de desnutrição 64 crianças recuperaram o seu peso e estavam com excelente crescimento, registando, no entanto, algumas delas, alguns problemas de desenvolvimento. Do grupo das 95 crianças desnutridas com idade superior a um ano, apenas 19 crianças se mantinham no patamar de desnutrição moderada. 

Os resultados obtidos são bastante animadores, pois a grande maioria das crianças tinha recuperado o peso, o sorriso e a esperança de crescer sem grandes problemas e outras registavam recuperação do seu peso.

O combate à fome é uma preocupação ética e moral de todos nós que afortunadamente temos mais do que suficiente para o dia a dia. As desigualdades entre os países ricos do hemisfério norte e os pobres do hemisfério sul são chocantes e exigem medidas estruturantes que ajudem as populações a quebrar o ciclo da pobreza a que estão sujeitas. 

Enquanto estas medidas não acontecem todos podemos fazer alguma coisa para evitar que algumas crianças sofram com fome no seu dia a dia. Vale a pena ajudar pois 1 euro por dia é o suficiente para oferecer a um bebé 6 biberões de leite; 3 euros e meio são o suficiente para fornecer a uma criança duas refeições de papinha enriquecida durante um mês. Regresso a Nampula, para mais um período de trabalho voluntário de combate à fome das crianças. Tenho informações que devido à escassez de chuva durante a época das sementeiras, haverá escassez de alimentos durante este ano, pelo que o espectro da fome ameaçará muitas crianças. Por isso, deixo o meu apelo à ajuda de todos os que se deixam sensibilizar por esta causa. Muito obrigada.

Maria Eugénia Ferreira Oliveira
(Enfermeira)

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