Na minha actividade como enfermeira voluntária no Hospital Dia do Hospital do Marrere tomei contacto com todas as crianças e famílias que frequentavam a consulta. Conheci várias famílias afectadas com a terrível doença do século – HIV /Sida.
Partilharam comigo os seus dramas e sofrimento. São histórias tecidas de muitas privações, fome e pobreza das quais eu sou testemunha. Fazem longas caminhadas a pé (mais de 20km), descalças, famintas, para terem uma consulta desta especialidade. As crianças, sendo um grupo vulnerável, ficam ainda mais expostas a todas estas circunstâncias adversas, tendo por isso vivências muito difíceis.
Para que possam avaliar melhor todo este contexto, partilho convosco a história da Dina Feliciano, uma das crianças que foi salva graças à generosidade de muitos associados e leitores da revista da APARF e que, sensibilizadas pelo meu apelo, rapidamente se organizaram fazendo chegar o seu donativo. A Dina nasceu a 26 de Janeiro de 2008. No seu boletim individual de saúde tinha registado 3200 gramas de peso de nascimento. No dia 16 de Maio, foi internada na enfermaria de pediatria por desnutrição severa, diarreia e febre. Fez o tratamento habitual para combater estes problemas. Depois de tratada teve alta mas era necessário resolver o problema da desnutrição, pois a Dina na altura do internamento pesava 2900 gramas, ou seja aos 4 meses de idade tinha menos 300 gramas em relação ao peso de nascimento.
Quando foi enviada para a minha consulta, confesso que fiquei muito perturbada. A Dina chorava muito quando lhe tocava para a pesar e medir, o seu olhar era de muito sofrimento e como podem imaginar o seu corpinho era de uma magreza extrema. Felizmente tinha sempre comigo no gabinete um termo com água fervida, biberões e leite. Preparei um biberão com o leite adequado e felizmente a Dina mamou com muito apetite e após ter saciado a fome adormeceu em seguida no colo da Mãe, que está infectada com o vírus HIV/SIDA.
Esta Mãe era uma doente inscrita na Consulta. Já tinha iniciado o tratamento com antiretrovirais, mas tinha abandonado a consulta e o tratamento. Era uma jovem evidenciando degradação do seu estado geral, muito magra, com várias lesões cutâneas, dificuldade na marcha e uma tristeza insuportável no seu rosto. Estava tão debilitada que não suportava o peso da sua filha ao colo.
Esta jovem Mãe andou a fugir à sua doença e com ela arrastou a sua filha. Tinha falseado os seus dados de residência (situação muito comum), pois não querem que a família e vizinhança saibam da sua doença. Foi “capturada” por um activista (funcionário que tem a responsabilidade de contactar os doentes faltosos e os que abandonam a consulta) por mero acaso, quando efectuava contactos num dos bairros periféricos da cidade. Foi reconhecida, e dada a gravidade da situação de ambas foi convidada a recorrer ao hospital.
A Dina recuperou da sua desnutrição, e no dia 18 de Julho pesava 5600, ou seja, estava prestes a dobrar o peso que tinha quando chegou ao hospital. Estava linda e sorria francamente.
Compreendo a natural necessidade de vinculação dos benfeitores com as crianças a quem ajudam. No entanto, é preciso que tomem consciência da impossibilidade de personalizar os contactos por diversas razões: em primeiro lugar não existe distribuição de correio ao domicílio. Os bairros onde a maior parte das crianças vivem, são um emaranhado de vielas e ruas de terra batida, sem numeração ou qualquer identificação. Os pontos de referência não são as esquinas ou cruzamentos, mas as mangueiras, cajueiros, mercados tradicionais, barraca onde se vende kapanga (bebida tradicional), muro da escola, montanha, igreja, casa do chefe do bairro, etc.
Depois as famílias mudam muito facilmente de bairro, cidade, província ou distrito por variadas razões (busca de melhores condições, fuga de problemas com família ou vizinhos, desagregação das famílias por morte ou separação). Toda esta instabilidade, como compreenderão, inviabiliza neste contexto quaisquer contactos personalizados com os destinatários da vossa ajuda.
Algumas destas crianças têm a sua sobrevivência ameaçada devido a infecções oportunistas, para as quais muitas vezes não há recursos terapêuticos adequados. Os dados estatísticos dizem-nos que não chegarão a completar os cinco anos de vida.
A vossa generosidade está a contribuir para melhorar a situação nutricional de 30 crianças do Hospital Dia. Algumas delas engordaram em média 2 quilos, começaram a gatinhar e a dar os primeiros passos, e ganharam vontade de sorrir, e essa conquista tem a marca da vossa ajuda. Penso que esse aspecto é de facto o mais importante.
Não se trata de um “projecto de apadrinhamento”, mas sim de uma atitude verdadeiramente altruísta de todos, pois trata-se de FAZER BEM SEM OLHAR A QUEM. São crianças desfavorecidas e doentes que precisam de uma oportunidade de deixar de ter fome.
Maria Eugénia Ferreira
Enfermeira voluntária no Hospital do Marrere e Responsável do Projecto SOS - Crianças em Risco
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