Avó Marieta

No seu corpo mirrado, no rosto onde são bem visíveis as dificuldades e agruras de toda uma vida, a avó Marieta vem carregando as dores da perda da filha. O seu corpo alquebrado carrega ainda uma neta de cinco meses de idade. Já fez uma longa caminhada, já venceu uns bons quilómetros após ter terminado a viagem de “chapa” (transporte público). Tinha de poupar o dinheiro para o regresso a Rapale e por isso calcorreou os oito quilómetros desde o terminal de camionagem até ao hospital. Sem cerimónias, entrou pelo gabinete, que a urgência era grande. Falou na sua língua macua, ininteligível para mim, fitando-me nos olhos. Não foi difícil compreender ao que vinha, pois, ao desfazer a capulana (pano) vi uma bebé desnutridíssima (com 5 meses pesava 3,5 Kg), procurando, esfaimada, o seio materno que tinha perdido. Depois que a neta saciou a fome, o alívio tomou conta da sua face. Contou então que tinha ficado com 5 crianças a seu cargo por morte da mãe da Neuza, na sala de operações, por ruptura uterina.

Falou ainda das suas dificuldades que são enormes, agora agravadas com o cuidado e responsabilidade de 5 netos, confirmadas pela ausência de qualquer peça de roupa da Neuza, que apenas estava envolvida numa gasta capulana.

 A avó Marieta nunca na sua vida tinha preparado um biberão, nunca tinha feito contas ao número de colheres de leite, nem tão pouco ao número de refeições necessárias ao bom desenvolvimento da neta. Foi necessário recorrer a um desenho representando o movimento do sol (sol pequenino, sol em crescendo, sol muito forte, sol diminuindo a intensidade, até ao aparecimento das estrelas ou lua) de modo a ter uma ideia das horas de dar comida à neta. 

No biberão uma marca com fita adesiva até onde colocar a água “cozida”. O número de colheres (desenho do número de colheres). Mesmo assim, devido à ausência de um familiar e face às dificuldades em lidar com estes novos apetrechos, informou que iria pedir ajuda a uma vizinha que era mais nova e até tinha andado na escola.

Considerava ela, que as suas mãos habituadas aos instrumentos do cultivo da machamba (horta), não eram capazes de fazer os procedimentos necessários à reconstituição do leite. Com imensa paciência e cuidado, reforçámos e demonstrámos a preparação do biberão.  

Na data prevista a avó Marieta vem à consulta. Informa que a Neuza está doente, sofre de “asma “e por isso não chupa bem no biberão. De facto, verificámos que a criança tinha uma dificuldade respiratória acentuada, febre, não tinha aumentado de peso e por isso aconselhámos o internamento no serviço de pediatria. Depois de uma longa negociação acabou por se resignar. Estava muito preocupada com os outros netos.

Durante a permanência no hospital aproveitámos para demonstrar de novo a preparação do biberão, o que aprendeu bem, após meia dúzia de sessões. Estabelecida a relação de confiança, acabou por nos confidenciar que iria dispensar os serviços da tal vizinha que se dizia amiga. 

Esperta, como é, tinha percebido que afinal o interesse da tal amiga, tinha mais a ver com o aproveitamento do leite para benefício dos seus filhos, do que ajudar a cuidar da neta da vizinha idosa em dificuldades.

A perda dos pais biológicos motivada por situações ligadas ao parto, ou por outras doenças particularmente a SIDA (situação muito frequente) acarreta problemas acrescidos para os membros da família. Há, nesta cultura, laços de solidariedade e valores ligados à conservação da rede familiar, que permite que os familiares se responsabilizem pelo cuidado das crianças. Prevalece sempre o lado materno, e em regra ficam ao cuidado do tio materno, em detrimento do progenitor, pois a organização desta cultura tem uma matriz matrilinear. Assim, e de acordo com a cultura macua, o irmão mais velho da mãe da Neuza deveria ter sido o responsável. Não foi este o caso, por razões, que a avó Marieta quis preservar e manter na privacidade da família. 

A avó Marieta, não lembra a sua idade. Descobri que “snifa” rapé, pois os dedos e o cheiro característico não lhe permitem negar a evidência. É sempre motivo de brincadeira entre nós, e agora já confessa o seu pequeno vício. Esta AVÓ que agora mostra orgulhosamente a neta, nutrida e desenvolvida (já aumentou 2,5 Kg de peso e cresceu 10 cm) e ainda as “TITIAS” que assumem de uma forma extremosa o cuidado das crianças órfãs, merecem todo o meu respeito e inteiro apoio. Não se poupam a esforços para assegurar um direito fundamental das suas crianças ou seja - O DIREITO À ALIMENTAÇÃO.

Eugénia Ferreira (Enfermeira)

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