(Continuação...)
Um mês depois, já em Portugal, no meu ano de finalista, completamente embrenhada no estágio de Cirurgia que me ocupava dia e noite, recebi um telefonema que haveria de mudar a minha vida. Do outro lado da linha, no meio de emoção contida e ruído de interferências, a Tia Cármen fazia-me um pedido extraordinário: o menino que eu tratara da tuberculose pulmonar estava em Lisboa, internado no Hospital de Santa Maria e seria eu, se fosse possível, que ficaria responsável por cuidar dele. Que lhe dizia? Podia ser?
Parecia um sonho e um pesadelo ao mesmo tempo... O que tinha o menino para estar internado? Ainda não se sabia ao certo, ficara com metade do corpo paralisada de repente, respondia a Tia Cármen, quase a rebentar em lágrimas, que cuidasse bem dele, por favor...
Não foi fácil encontrá-lo naquele hospital labiríntico, até porque no meio do telefonema da Tia Cármen, durante uma cirurgia de emergência no Hospital de São José, a última coisa que me ocorreria teria sido perguntar pelo apelido do menino. Algumas horas depois, mal acreditando no que via, fui dar com ele num quarto de isolamento, onde o tinham colocado por causa da tuberculose, completamente sozinho, a chorar convulsivamente. Pedi para ir ter com ele e, depois de muita insistência, lá me deixaram entrar com bata, máscara, touca e muitos avisos de que “tenha cuidado, ele tem tuberculose, todo o cuidado é pouco!”
Como é que a vida consegue às vezes ser tão cruel para uma criança? Aquele menino tinha perdido os pais, tinha-se adaptado com dificuldade a um orfanato, sobrevivido a uma doença tão grave e, em poucos dias, a vida pregara-lhe uma rasteira novamente... tinha deixado de se conseguir movimentar, correr, falar e tinha sido colocado num avião, atravessado meio mundo completamente sozinho para ir depois para um quarto de isolamento num país que não era o seu, no meio de pessoas a quem não conseguia ver o rosto e que cuidavam dele apenas pelo tempo estritamente necessário... Será que poderia algum dia recuperar disto?
Assim que fechei a porta do quarto tirei aquela máscara e a touca ridículas que nunca me passara pela cabeça utilizar em Moçambique, mesmo no auge da sua doença, mas nem assim o menino deu sinais de me reconhecer. Só depois de muitas horas a falar-lhe da Casa do Gaiato, da Tia Cármen, do Senhor Padre e dos outros meninos da Casa é que deu sinais de querer voltar à realidade e se decidiu, com muita dificuldade, a articular uma única frase: “Amanhã vai vir?” Claro que viria... Todos os dias.
Diziam-me que se suspeitava de que a causa da paralisia fosse uma doença infecciosa tropical (como se os meninos africanos não pudessem ter as mesmas doenças sofisticadas dos meninos europeus...) e ainda passaram alguns dias até me darem o diagnóstico definitivo: era um tumor maligno do cérebro e o menino tinha poucos meses de vida... Confirmava-se, infelizmente, a minha primeira impressão sobre ele: o meu menino nunca tinha sido deste mundo... O Neuropediatra Nuno Lobo Antunes, uma das pessoas mais experientes no assunto do nosso país e que o acompanhou desde o início avisou-me que estes meninos, com tumores do tronco cerebral, morrem sempre duas vezes, mas nem nisso a sua vida foi linear: o meu menino morreu muitas mais, mas renasceu à minha frente outras tantas! E quando, por fim, se despediu de vez, tenho a certeza de que renasceu para o colo aberto de seus pais, que no céu há muito o esperavam.
Mas, assim, esta morte prematura anunciada foi como se tivesse sido a minha permissão para fazer o que nunca poderia ter feito com um filho de verdade: durante o tempo em que esteve comigo, estraguei-o com mimos, fiz-lhe deliberadamente as vontades todas. Pouco tempo depois o menino teve ordem para deixar o isolamento e, com a radioterapia, depressa voltou a falar e a parte do corpo paralisada ganhou vida novamente. O seu primeiro desenho ainda o tenho. E a sua primeira birra, sinal de que já estava seguro de que não me iria perder, foi o meu orgulho! A primeira frase que articulou correctamente ainda hoje me faz rir por causa do sotaque cerrado de que já não estava à espera... Levei a sério a missão de gozar aquele anjo enquanto cá esteve: deitávamo-nos tarde, víamos os mesmos filmes vezes sem conta, comíamos chocolates todos os dias, brincávamos a tudo o que nos passava pela cabeça, dançávamos danças africanas no meio da galhofa geral, cantávamos as músicas todas dos desenhos animados em karaoke... O meu único Natal com ele foi isso mesmo: único! E ele o meu menino Jesus... Para sempre menino. É ele o responsável de, por vezes, me assaltar uma vontade incontrolável de regressar a um país que não é o meu, mas que quero à viva força que não cresça sem mim... E é também ele o eterno culpado de eu ter escolhido ser Pediatra e afirmar a todos os pais, com verdadeiro conhecimento de causa, que basta que uma criança tenha quem se preocupe com ela para voltar a ter vontade de viver e ser feliz, mesmo que tenha passado pela mais dura das experiências.
Obrigada a todos e votos de um excelente ano, com muita saúde e felicidade.
Patrícia Lopes
(Médica)
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