(Continuação...)
(Continua...)
Havia que começar rapidamente o tratamento, mas se inicialmente parecia uma situação banal que se haveria de controlar facilmente, em pouco tempo comecei a ficar cada vez mais preocupada: o menino piorava a cada momento... Com ele nos meus braços passei aquela que até aí foi a noite mais longa da minha vida, angustiada com a nítida sensação de que alguma coisa de muito grave me estava a escapar, angustiada por aqueles olhos doces em sofrimento, que não se fecharam em toda a noite, angustiada pela dificuldade respiratória que voltava sempre, por mais aerossóis que lhe fizesse e pelo seu silêncio, apesar dos meus esforços para que me dissesse o que sentia e onde lhe doía. Só adormeceu ao amanhecer, exausto, quando a febre finalmente cedeu às várias doses de paracetamol e às toalhas com água morna com que tentei a noite inteira acalmar a febre sempre a subir, em tremores constantes e depois de já lhe ter enfiado dois antibióticos pela veia. Aquela doença seria malária, com certeza, porque tinha visto com os meus próprios olhos o parasita ao microscópio, mas não podia ser só malária, não podia mesmo... Pelo que auscultava, parecia-me ter uma pneumonia com derrame pleural.
De manhã eu própria estava exausta e mais angustiada do que nunca. Não tinha coragem de descansar um minuto que fosse porque tinha a certeza de que ele poderia desistir a qualquer momento… das raras vezes em que abria os olhos já não sorria e o seu olhar de abandono dava-me a sensação de que não queria lutar mais… Não me esquecia de que tinha perdido os pais havia pouco tempo e ainda não tinha criado laços fortes com ninguém, nem mesmo com a Tia Cármen… Como é que uma criança haveria de ter alento e querer lutar nestas condições? A pouco e pouco foi respirando cada vez mais devagar… Ia parando lentamente, em pausas cada vez mais longas. Não sei quanto tempo mais fiquei a chorar sem coragem de aceitar o que se passava... De manhã o Vicente entrou, veio sentar-se ao meu lado, tirou-me o menino dos braços, deitou-o na cama e cobriu-o com um lençol. Abracei-o sem dizer nada.
– Não chore, tia Patrícia. Tem de dormir, eu agora fico aqui, não vou à escola.
– Tens de ir, Vicente.
– Não, os professores já sabem que eu não vou porque um menino está muito doente. E este, quando chegou, dormia sempre comigo antes de a Tia Cármen vir.... Chamava pai a mim...
Comecei a chorar outra vez. Mas não me dava por achada. Enquanto houvesse mais alguma doença para tratar haveria de tratá-la! Durante a nossa conversa, talvez por ouvir a voz do Vicente, o seu primeiro pai naquela casa, abriu os olhos novamente e a respiração foi-se regularizando… Bendita manhã, que parece que torna sempre tudo menos terrível. Aquela sensação de absoluta certeza de que o menino ia morrer deu lugar a alguma esperança... podia ser que fosse só uma pneumonia que se tivesse aproveitado da fragilidade causada pela malária.
– Ele tem mais qualquer coisa, Vicente, não é só malária, de certeza. Se amanhã ainda tiver febre, temos de ir ao Hospital Central.
– Vá descansar, tia Patrícia. Eu acordo-a se ele piorar.
Nem três horas depois, a febre voltava a subir e o Vicente foi-me acordar depois de tentar baixá-la em vão durante duas horas... De novo o olhar de despedida e a dificuldade respiratória.
– Não aguento mais, temos de o levar para o hospital.
– Não, tia Patrícia, vamos esperar mais um pouco, o senhor Padre não vai concordar.
– Porquê?
– Tia Patrícia não conhece o Hospital Central. Todos morrem lá.
– Isso não pode ser verdade, Vicente.
– Não, tia Patrícia. Tia Patrícia não conhece o Hospital Central... Ele vai melhorar, malária é assim mesmo...
Acabámos por ir para o Hospital Central no dia seguinte, depois de mais um dia de febre, tremores e dificuldade respiratória cada vez mais intensa. Tínhamos repetido a análise e já não havia qualquer parasita em circulação.
– Eu sabia que não era só malária, não podia ser...
Quando vi a radiografia abri a boca de espanto e a prova tuberculínica, dias depois confirmou o diagnóstico: era uma tuberculose pulmonar com um derrame pleural enorme. Mas o Vicente tinha razão quando tinha dito que eu não imaginava o que era o Hospital Central... Se tinha pensado que talvez fosse melhor o menino ficar internado, mudei de ideias no mesmo momento. Nem por sombras o deixaria no hospital. Quando me vim embora para Portugal, o menino já estava a melhorar, a febre baixava mais rapidamente e tinha feito alguns progressos na comunicação. Adorava estar ao colo e, de vez em quando, olhava para mim como que para ver se eu estava mesmo ali, se estava mesmo com ele... E pelo menos já não comunicava só com aquele sorriso lindo, já falava!
(Continua...)
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