NELSON - O MEU MENINO GAIATO - Parte II

(Continuação...)

Contou-me uma tarde a sua dura experiência de uma infância passada durante a guerra civil de Espanha, em que mais do que uma vez tinha sido obrigada a fugir a pé com a família. Nesse dia, já rendida àquela personagem maternal, divertida e invulgar, pedi-lhe para me falar dos seus trabalhos artísticos e ela contou-me simplesmente que o maior prémio de pintura que alguma vez tinha recebido retratava um enorme campo de girassóis. Dias depois mostrou-me uma fotografia desse quadro, em que os girassóis eram retratados a partir de baixo, com os caules cheios de espinhos e a luz do pôr-do-sol adivinhando-se coada pelas corolas das enormes flores. Mas longe de ser a visão serenamente bucólica que eu tinha imaginado pela descrição, a imagem veiculava uma desconcertante sensação de movimento e opressão. 

– Este quadro chama-se “A Fuga”. Durante anos tive a obsessão de pintar girassóis vistos por baixo porque tinha de deitar cá para fora a imagem do pior dia da minha vida, que foi o dia em que perdi o meu pai e tivemos de fugir de casa sem levar nada connosco, através de um campo de girassóis. Eu era muito pequena e só tenho a recordação de enterrar os sapatos na areia mole e mal conseguir avançar, como nos pesadelos. E os girassóis eram altíssimos e tinham uns espinhos enormes que não picavam, mas arranhavam a pele até ficar toda em ferida.

Estava explicada, portanto, a sua vocação do ensino da expressão plástica aos meninos. Ao ensiná-los a pintar estava a transmitir-lhes a sua melhor defesa da personalidade, a ensinar-lhes que pintando as suas angústias e medos poderiam mais facilmente vencê-los. Mas não eram só aulas de pintura que leccionava. Depois dos desenhos, os meninos contavam a história do desenho, falavam sobre as personagens, inventavam diálogos, projectavam-se nas figuras. Era magistral a forma como a Tia Cármen, sem nunca ter tido aulas de Psicologia, respondia às angústias dos meninos referidas às personagens no papel. Era comentado por todos, sobretudo pelas educadoras da escolinha, que os mais pequenos tinham ficado muito mais calmos desde que a Tia Cármen tinha chegado. Pudera... 


(Continua...)

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