A HISTÓRIA DE UMA PAIXÃO - Parte VI

(Continuação...)

Depois do trabalho no Centro de Saúde eram os meninos que preenchiam o fim das minhas tardes e as noites. O meu quarto na Casa do Gaiato era na casa dos meninos dos 8 aos 10 anos e rendi-me a eles desde o primeiro dia, em que, horas depois da minha chegada, me foram colocar na mesa de cabeceira uma flor silvestre que crescia dentro de uma casca de coco... À noite ajudava-os com os trabalhos de casa; como ainda faziam chichi na cama levantava-me para os mandar à casa de banho poucas horas depois de adormecerem, embora as reacções de pânico de alguns quando eram acordados me perturbassem de sobremaneira... Que histórias de vida terríveis estariam por detrás dessas reacções? Nunca tinha lidado com situações dessas, mas descobri que afinal era fácil tranquilizá-los e chamá-los à realidade: 

– Aqui estás seguro... ninguém te vai fazer mal.

Tornei-me a solução de recurso nas brigas, tão frequentes quanto seriam de prever numa casa só de rapazes... 

Alguns dos meninos mais velhos, agora já com 17 ou 18 anos, tinham andado na guerra. Apercebi-me disso já quase no fim da minha estadia no meio de uma conversa com os mais novos, uma frase cruzada captada de raspão, que na altura não me fez muito sentido porque não podia conceber os meus meninos numa situação tão monstruosa. Mas claro, se tinha acontecido com tantas crianças, por maioria de razão poderia ter acontecido a estas, tão desprotegidas... E nessa noite a frase ecoava-me nos ouvidos, não tanto pelo sentido como pela expressão comprometida do menino que a tinha dito e o olhar fulminante dos outros que o rodeavam. Claramente era um assunto tabu, não entre eles, mas entre eles e os adultos. Ainda assim só consegui ter a certeza de que aquela interpretação não tinha sido fantasia minha quando o Padre Zé Maria mo confirmou. Não se alongou: 

– O que é que isso interessa agora? Já basta tudo quanto sofreram. Há dois anos apareceram aí uns oficiais do exército a perguntar quais é que tinham sido os meninos, queriam nomes, sabe-se lá para quê, mas eu recusei-me a responder. Quase todos agora são adolescentes normais. Só um ou dois é que o psiquiatra achou que precisavam de acompanhamento. Para quê desenterrar o que já lá vai se não os ia ajudar em nada? Mais vale que esqueçam...

Mas não, não esqueciam. Eram diferentes dos outros. E seriam sempre diferentes… Para os mais novos, os que tinham sido mobilizados eram respeitados e reverenciados como uma espécie de heróis e rodeavam-nos para ouvir as suas histórias. Mas os mais velhos escutavam-nos mais com compaixão do que com respeito ou inveja. Entendiam a sua fragilidade… Não me foi difícil depois perceber quais eram estas “estrelas” que tinham um estatuto diferente e assisti a uma ou outra discussão em que não se abordava directamente o assunto da guerra, mas em que se notava claramente o seu fascínio por armas... Realidades tão diferentes e histórias de infâncias tão terríveis e tão distintas da minha… Mas foi pelo amor por eles que aprendi a amar Moçambique e a querer cada vez mais voltar.


Patrícia Lopes
(Médica)


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