A HISTÓRIA DE UMA PAIXÃO - Parte II

(continuação...)

O posto médico (sempre a minha referência geográfica...) encaixava-se entre o edifício principal e as casas dos meninos e era onde ficava a enfermaria em que dormiam os doentes – era uma festa quando tinham de ficar internados!, o efeito novidade e a perspectiva de ficar na galhofa até mais tarde falavam sempre mais alto do que a doença... Isso e o facto de serem dispensados da escola e das actividades em que participavam faziam da enfermaria uma casa particularmente cobiçada. Até um dos pequeninos, o Rui, que não devia ter mais de três ou quatro anos, vinha ter comigo todas as noites e pedia, risonho, ao mesmo tempo que se me aninhava no colo:
– Quero ser doente... 

No extremo diametralmente oposto da área do resort erguia-se a escola e, como não poderia deixar de ser, para compor o meu quadro de estância turística em África, um lago natural lindíssimo, à beira do qual os meninos iam passear aos Domingos, à garupa dos burros que durante a semana eram utilizados no cultivo dos campos. Era uma visão simplesmente hilariante porque, como os burros eram muito manhosos e ameaçavam a qualquer momento fazer saltar os mais atrevidos, baixando a cabeça violentamente, os meninos montavam-nos de costas, como se não precisassem de ver o caminho... Tudo isto rodeado de uma paisagem avassaladora de vegetação seca rasteira, de onde dava impressão que se podia ver sair a qualquer momento uma gazela ou outro animal selvagem e de onde se elevavam inúmeras micaias, com a sua copa espalmada, como se estivessem a crescer contra um céu demasiado baixo e me faziam, absurdamente, lembrar o cabelo de uma antiga professora de matemática...

Por vezes, ao fim da tarde, uma atmosfera pesada e sufocante pairava sobre nós, carregando o ar de electricidade estática e eu perguntava ao guarda do portão da Casa: 
– Vamos ter chuva?
– Não, respondia, vamos ter vento...

E no dia seguinte concretizava-se o vaticínio: uma ventania fazia saltar a poeira debaixo do capim, cobrindo a paisagem de um véu de bruma seca e áspera, que picava na garganta e nos olhos, que fazia saltar das prateleiras do posto médico os anti-histamínicos, os colírios, os aerossóis, que mudava a cor do sol para vermelho, transformando a tarde inteira num crepúsculo desmedido e me fazia compreender o porquê de ter visto tantos desenhos dos meninos com o sol pintado de vermelho vivo...
 
(Continua...)

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