Uma nova manhã em Iapala - parte I

Deixo-me ficar na cama mais uns minutos depois do alarme tocar. Recordo-me desta noite... ainda nem acredito que recebi um recém-nascido em Moçambique, à luz das velas, como nas mais antigas histórias que ouvia contar! 

Tenho de ganhar coragem para me levantar, mas arrepio-me só de pensar em ir para o duche. Se há coisa a que seria improvável habituar-me é ao duche de água fria pela manhã. Um importante aspecto em que a minha inculturação falharia sem apelo nem agravo... As Irmãs sempre solícitas: “Pode pedir ao cozinheiro que lhe aqueça água para o banho.” Mas nem pensar em indulgenciar nessas mordomias quando a lenha é tão difícil de arranjar... Cumprimento a Amélia, a minha discreta companheira de quarto, uma osga simpática e madrugadora, que a esta hora já se encontra colada aos vidros da janela ao sol (desconfio que terá passado ali a noite...), com as patinhas cheias de dedos esticadas numa enorme preguiça, à espera do pequeno-almoço esvoaçante. Instalou-se no meu quarto há três dias, trazida pelo cozinheiro ante o meu olhar de ponto de interrogação (eu tinha-lhe pedido insecticida pois não tinha rede mosquiteira no quarto, ao que ele respondera: 
– Não sei o que é “set’cida”, Doutóra...
– Remédio para os mosquitos – reformulei.
– Ah, não tem problema!
E horas depois regressou com a Amélia...). A verdade é que esta minha inquilina é uma exímia caçadora de mosquitos e ainda não precisei de usar insecticida. Já vestida, apresso-me para a sala de jantar para tomar o pequeno-almoço de pão com doce de manga, banana-macaco e café natural, deliciosamente perfumado, criado, torrado e moído na própria Missão. 

Chego ao hospital já passa das 07:00 e esperam-me para iniciar a visita. O Rufino, o menino de nove anos que chegou durante a noite, miraculosamente, ainda sem ter feito sequer a segunda dose de quinino, já acordou, levantou-se para ir à latrina e toma agora o pequeno-almoço com o ar vagamente desorientado de quem não conhece o sítio onde está nem faz ideia da forma como lá foi parar... 

(Ditosa pátria que tais filhos tens! Assim vale a pena trabalhar, se ficam bem logo à primeira dose!) 
À excepção deste susto, no internamento foi uma noite calma, sem intercorrências e há poucas novidades dos doentes internados. Como são poucos os que permanecem nas suas camas após o acordar (só mesmo os que não se conseguem pôr de pé é que ficam na cama), para os observar temos de os ir procurar ao pátio. Sempre o mesmo alvoroço cómico todas as manhãs. Nunca me tinha passado pela cabeça uma situação destas, ir para o hospital trabalhar e ter de ir à procura dos doentes para os observar... Mas estão quase todos a melhorar, portanto deixo o trabalho nas mãos dos enfermeiros e vou para a sala de urgência. Não resisto a passar pela maternidade primeiro para visitar o recém-nascido e a mãe. Estão ambos bem. A mãe, então, está radiante com o seu menino tão esperado. 

Na sala de urgência dizem-me que a técnica de Saúde Materno-Infantil não chegou ainda do fim-de-semana em Nampula e vou ter de ser eu a fazer a consulta de urgência da Pediatria, mas o edifício onde funciona o atendimento às crianças é tão escuro que peço para me transferirem a secretária para o pátio interior do hospital. Que falta que nos faz a energia... 

Começa a chegar a procissão do paludismo... cada mulher carregando devotamente o seu andor anémico e febril enfaixado contra o corpo com capulanas coloridas. Vêm bichar quinino e cloroquina, como bichavam milho nos tempos da guerra... A palavra Macua para “medicamento” ou “comprimido” é, de resto, salvo melhor transcrição, “kininu”, delicioso equívoco que me custou alguns dias a desvendar.
Mas, para meu desespero, esta manhã, em vez da mefloquina para profilaxia da malária, tomei por engano o anti-histamínico que tinha destinado para me adormecer na viagem de regresso e me fazer esquecer as saudades deste povo fantástico. Malditas embalagens que me tornam tudo igual na miopia das madrugadas! E o pior de tudo é que só dei por isso a meio da manhã quando comecei a perceber que não podia culpar o café de Iapala pelo sono que sentia. Mais aromático que qualquer Arábica, curto, conciso, contundente, contava com ele para me sacudir a modorra da manhã, mas... tarde demais, não tinha ido a tempo. 
E o cortejo das febres, interminável, estende-se já até ao fundo do pátio sem parar de crescer. Malária, malária, malária, anemia, desnutrição, queimaduras, pneumonias, pielonefrites, bilharziose – endémica na província – uma suspeita de doença celíaca, uma epilepsia e, claro, a SIDA de que suspeito constantemente, embora não possa fazer testes confirmatórios nem tenha anti-retrovirais. É o que mais me dói não poder tratar nestas crianças. E pensar que, pelo menos nelas, a doença se poderia prevenir de modo tão simples... Mas não posso pensar nisso. Tenho de tratar só o que vejo e o melhor que souber. A cólera, felizmente, não anda por estas paragens nesta altura do ano e o sarampo é já praticamente desconhecido graças ao empenho das Irmãs nas campanhas de vacinação. Valha-nos isso, que com este grau de desnutrição o sarampo teria 50% de mortalidade... 

De súbito, o director do hospital vem pedir-me conselho sobre como gerir uma reacção adversa que uma doente está a ter a um medicamento. Vem acompanhado de uma senhora de olhos tristes. 
– Que doença tem a senhora?
– Tem lepra, doutora...
– Lepra?!
(Mas existe lepra nesta zona?!) Uma vergonha estranha invade-me de rompante, assim como uma criança que não sabe a tabuada e que de repente se apercebe que é a única de todos os colegas que ainda não estudou a lição, ou a única que nunca ouviu a música que já todos cantam de cor... 
– Qual é o medicamento que lhe está a fazer reacção?
– Rifampicina.
Felizmente é um medicamento que conheço bem, porque também é utilizado no tratamento da tuberculose e posso responder à questão... Mas uma angústia estranha permanece... Não que seja vergonha não conhecer uma doença que é rara no meu país, mas era como se tivesse acabado de vislumbrar um mundo diferente... Lepra?! Qualquer coisa de irracional pulsa dentro de mim e me grita, contra a minha vontade, que algo de muito grave se passa em meu redor... Mas por que será que tenho esta impressão?, pergunto-me... Por que é que, por exemplo, o meu primeiro caso de malária não me fez sentir assim? Será possível que esteja, depois de não sei quantos anos a estudar Medicina, a cair num preconceito veiculado pelo Antigo Testamento? E logo eu, que até achava que tinha uma mente aberta? [...]

Patrícia Lopes (Médica)

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