Há festa em Murralelo - parte III

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O tio chega, finalmente, espavorido e com lágrimas nos olhos, estava na machamba, um pouco longe dali. Ficou contente com a proposta de levar o menino para o hospital e deu o seu acordo de imediato. Num segundo tudo ficou pronto para partir, foi como se alguém tivesse ligado novamente a câmara rápida. Até o menino se tentou colocar de pé, mas foi impedido pelo próprio tio, que insistiu em carregá-lo às cavalitas. Quando chegamos, o carro já está pronto para partir porque o motorista já imaginava a gravidade da situação. O menino, surpreendentemente, depois de tomar a água com açúcar não voltou a ter outra convulsão e parece ter já outro brilho no olhar... Mas até quando? Subimos para o carro. Não há lugares sentados para todos, por isso a família vai na caixa aberta do jeep, juntamente com outros doentes que pediram para ser transportados para o hospital: uma grávida em fim de tempo, uma menina com um abcesso dentário e celulite da face e um menino desnutrido, todos com as respectivas famílias. Não podemos avançar muito rápido porque a estrada é péssima e o carro vai muito carregado. Só me apetece chorar... Subitamente vêm-me à memória as aulas de Microbiologia… Como pude ser tão auto-confiante e insistir para que o menino viesse? Aquela melhoria aparente não deve ter sido por termos tratado uma hipotética hipoglicémia, foram provavelmente as típicas “melhoras da morte” da malária cerebral! Por que fui eu dar falsas esperanças e deslocar uma família tão pobre? Para os deixar com uma dor ainda maior? Olho novamente para trás. O menino teve uma nova convulsão. Parece que não aguento mais tanta angústia... Dão-lhe mais água com açúcar e mais uma vez parece melhorar... A Irmã parece ler os meus maus pensamentos: 

– Estamos a fazer o que podemos, já não seria o primeiro doente a morrer-nos no caminho. Mas Nossa Senhora há-de nos ajudar.

Parece que as orações me acalmam um pouco. Não sei quantas vezes mais o menino teve convulsões até chegarmos ao hospital, com ele completamente inconsciente há mais de 15 minutos. Já levo a medicação programada e as contas todas feitas. Enquanto os enfermeiros lhe colocam uma via de acesso venoso, ajudo os outros doentes a descer do carro. Um dos meninos está a tremer de frio... (Arrefeceu durante o fim da tarde). Tento abraçá-lo para o aquecer, mas tem medo de mim. Claramente nunca viu uma mulher branca. Entrego o meu casaco de malha à mãe para vestir o menino, mas tenho de correr para dentro para preparar a medicação. “Meu Deus, não me falhes, se conseguimos chegar até aqui com ele vivo, não é justo que ele nos morra agora, lutou tanto...” A febre volta a subir, mas desta vez foi mais fácil arrefecê-lo e uma hora depois já está novamente fresco. 

O quinino vai correndo gota a gota, lentamente. Ainda faltam três horas para terminar a primeira dose. Quase ao fim das quatro horas abre os olhos e, pela primeira vez, volta a falar. Pergunta onde está, que lugar é aquele. O exame neurológico não mostra alterações. Estamos no bom caminho, acho que está vencida a batalha, felizmente! Ao menos valeu a pena tanto sofrimento… 

Já me posso preocupar com os outros doentes. A grávida está bem, mas é o décimo filho e ainda não há qualquer sinal do trabalho de parto. Vão ser uns dias longos por aqui... A menina do abcesso dentário e celulite da face vai começar o antibiótico e o menino desnutrido está ao colo do cozinheiro do hospital, o Sr. Manuel, que já lhe começou a preparar as soluções de recuperação nutricional, feitas segundo os preceitos da Organização Mundial de Saúde, com um toque da alta cozinha Iapalense, “uns pozinhos do Sr. Manuel”, como o próprio faz questão de dizer. 

Foi um dia rápido! Rápido demais, talvez, para digerir tudo quanto vi... Mal sabia eu que teria mesmo um curso relâmpago de inculturação no primeiro dia. Só espero terminar a minha estadia compreendendo um pouco melhor este povo. A Irmã Lurdes move-se no meio deles como peixe na água, tenho isso a meu favor, pelo menos...

Patrícia Lopes (Médica)

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