[... continuação...]
A sala de partos, alumiada por uma única vela, está cheia
de penumbra e múltiplas sombras enormes nas paredes, mas consigo distinguir
claramente a face da jovem grávida que trouxemos de Murralelo, que afinal era
uma das professoras da escola da aldeia.
Todos os partos anteriores tinham sido em casa mas, apesar de ser ainda jovem,
este já é o décimo filho e fiquei a saber que no ano passado teve um nado-morto
após um trabalho de parto particularmente complicado e por isso tinha decidido
dar à luz este “menino de ouro” no hospital da missão, deixando os outros
filhos ao cuidado das tias e dos irmãos mais velhos. Deitada, completamente
despida sobre a marquesa surpreende-me o seu corpo completamente tatuado do
peito para baixo, até aos joelhos, com padrões em relevo bem delineados e quase
perfeitamente simétricos, que só podem ter sido realizados com recurso a
incisões cutâneas bastante profundas de forma a fazer este tipo de cicatriz.
Tento não fazer uma expressão que denuncie o meu sentimento de horror por
aquele corpo martirizado. Beleza, a quanto obrigas... Ao seu lado, a D.
Catarina tem a mão sempre pousada sobre o ventre da jovem mãe, num quadro que
faz evocar a maternidade de outros tempos.
A parturiente está a gemer, com a dilatação quase completa.
Felizmente, tem tido sempre as mãos experientes da D. Catarina a massajá-la
para a ajudar a relaxar. Este parto não está a correr bem. As contracções estão
muito espaçadas e a D. Catarina está preocupada. A bolsa das águas já rompeu há
muitas horas e a senhora está a ficar com febre. E o pior de tudo é que o útero
se está a contrair pouco e a senhora corre o risco de ter uma grande hemorragia
no pós-parto... Ausculto os batimentos cardíacos do feto, que estão
anormalmente acelerados... Sei o que isso quer dizer: Infecção!
– Não podemos colocar um antibiótico à senhora?
– Sim, Doutora, mas tem de prescrever.
– Claro, prescrevo já. E não têm nada para aumentar as
contracções?
– Talvez haja oxitocina no armazém... Se a Doutora tiver a chave.
– Tenho, vou ver se encontro alguma coisa que nos sirva...
Havia, felizmente, uma ou duas ampolas com o princípio activo
escrito em alemão, certamente cedidas por alguma ONG que coopera com as Irmãs.
Em pouco tempo as contracções tornaram-se mais próximas e
prolongadas.
– Já está quase, faça força outra vez. Quer fazer o parto,
Doutora?
– Não, nem pensar! Nunca fiz nenhum...
– Não acredito, Doutora está a mentir!
– Não, é verdade. Ou melhor, fiz um, mas com muita ajuda...
– Eu ajudo também. Doutora vai fazer o parto.
Não havia como argumentar, a D. Catarina tinha decidido que quem
faria o parto seria eu. Arregacei as mangas e calcei as luvas mesmo a tempo
de receber o bebé. Foi muito fácil este parto, realmente, foi quase só amparar
o períneo e impedir que o bebé caísse estatelado no chão... Graças a Deus! A
natureza providenciou tudo o resto. E à pálida luz da vela houve um momento
incrível de expectativa e silêncio absoluto, em que entreguei o menino à D.
Catarina, que o esperava calmamente ao meu lado, com uma capulana nas mãos. O
bebé teve choro imediato, num grito que encheu a noite e os gemidos e receios
da mãe transformaram-se em riso e agradecimento.
– Nasceu! Nasceu e é macho! Papá, nasceu e é macho!
O grito de júbilo da D. Catarina enquanto eu cortava o cordão
umbilical e o alarido das familiares da parturiente que se seguiu só pode ter
acordado o hospital inteiro! Também eu estou quase de lágrima a assomar ao
cantinho do olho... Ainda nem acredito que, sem contar com nada disto, recebi
um bebé pelas minhas próprias mãos.
– Parabéns, mamã! É um rapaz lindo! Como é que se vai chamar?
– Ainda não. Há-de chamar depois.
– Pois, Doutora – responde a D. Catarina – os bebés não podem ter
nome antes de nascer. Até podem morrer! Só depois de nascer se pode fazer
cerimónia e dar nome, antes não.
(Estou sempre a pôr o pé na poça, credo...)
Sim, mas faz sentido, eu já sabia que na cultura macua o conceito
de futuro é tabu. O futuro é propriedade dos antepassados e fazer planos pode
ser uma intrusão num terreno interdito, um terreno que não pertence às pessoas
e a falta pode ser gravemente punida... Bem, mas já que não percebo a cultura,
tenho de me preocupar com as coisas que sei fazer. O bebé está óptimo e
coloco-o ao peito da mãe. Inspecciono a placenta, que veio intacta, o útero
também está bem contraído, graças a Deus e à ONG alemã – e não há sinais de
hemorragia grave.
Agora tenho de me ir deitar urgentemente, antes que me demova de
vez a perspectiva de voltar a atravessar o caminho para casa, escrutinando
todos os acidentes de terreno com uma lanterna. Antes que o momento de magia
que acabei de viver me invada totalmente e me faça fazer qualquer coisa
completamente louca, como ficar a dormir aqui mesmo, ao relento nesta noite
fantástica, invadida pelo cheiro intenso da savana e adormecer a olhar a
paisagem das estrelas e das montanhas a arder aqui e ali, no chão da varanda do
hospital, juntamente com os familiares dos doentes. Quando chego à casa da
Missão cruzo-me com as Irmãs que já se levantaram para rezar as Laudes na
capela.
– Era rapaz não era? – perguntam.
– Sim, nasceu um rapaz agora mesmo, como é que sabem?
– Pelo alarido que até aqui se ouviu... só podia mesmo ser um
rapaz!
Patrícia Lopes (Médica)
Voluntária da APARF
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