A caminho da Missão de Iapala

Já passa do meio dia quando aterro pela primeira vez na cidade de Nampula, no Norte de Moçambique, em Agosto do ano passado, tendo como destino a Missão de Iapala, a 180 km de distância, onde ficaria a trabalhar como voluntária no hospital da Missão, uma vez que sou médica, recém licenciada e com uma paixão inexplicável por África, nascida dos encantos da minha primeira vez na savana um ano antes. Sou de imediato acolhida com a vivacidade da Irmã Conceição, que me leva a dar uma volta de carro pela cidade. Um breve conhecimento da capital de província e o meu último contacto com o ambiente urbano, antes da partida para a Missão de Iapala.

... Vêm chamar-me para ir ver uma mulher que tem um recém-nascido de poucos dias ao colo. É o neto. A mãe está doente e teve de ser transportada para a cidade, sem possibilidade de cuidar da criança, uma situação extremamente delicada. “Ihali, Irmã?”, cumprimenta-me. (Como está, Irmã?) Já nem sequer tento desfazer o engano. Não há maneira de convencer as pessoas de que não sou religiosa e não me devem tratar por Irmã. De qualquer modo acho que não acreditariam em mim, pois se já tenho 24 anos e ainda não tenho filhos... A avó, aflita, só fala Macua e não a compreendo, mas o enfermeiro diz-me que me pede leite em pó para dar à criança. Nós temos leite para lactentes no armazém do hospital, mas o problema é a água... É praticamente impossível conseguir água potável nas aldeias que rodeiam a Missão e portanto fornecer-lhe o leite é uma irresponsabilidade da minha parte e poderá mesmo equivaler a uma condenação da criança a sucumbir a uma gastroenterite. Os adultos já estão habituados e praticamente imunes às bactérias e parasitas mais corriqueiros, mas os recém-nascidos são muito frágeis. “Onde vive?” A sua aldeia fica a 50 km daqui. Já passei por lá com a Irmã Lurdes na campanha de vacinação e sei que não tem uma fonte de água potável, pelo que as pessoas vão buscar a água que bebem ao rio – que na estação seca quase não passa de vários charcos de água parada a céu aberto – lavam-se no rio e é também nele que fazem os despejos. E está fora de questão ferver a água para preparar o leite, já que a pouca lenha que as famílias conseguem arranjar mal dá para cozinhar. Aliás, em todas as famílias há pelo menos uma pessoa cuja única função diária é ir buscar lenha.

Ponho o problema à Irmã Lurdes, que me diz para a levar à D. Catarina. A parteira do Hospital é uma mulher robusta, com uma personalidade forte e determinada, viúva e mãe de dez filhos, infelizmente nem todos vivos. Já não é nova, como o afirmam as suas rugas e a ausência de alguns dentes, e o que lhe falta em conhecimento científico sobra-lhe em experiência. Tem sobretudo uma intuição fortíssima, em que já confio quase cegamente. Na maternidade, onde raramente estou porque tenho imenso trabalho noutros serviços, sem o apoio de um aparelho para registar a evolução da frequência cardíaca do feto e das contracções uterinas fico completamente cega, sem qualquer referência para me orientar e os meus parcos conhecimentos de Obstetrícia servem-me para muito pouco... Ela, pelo contrário, não arreda pé da sala de partos, dure o trabalho de parto quanto tempo durar, conversa com as mamãs, canta canções às mais novas, faz-lhes massagens de relaxamento no intervalo de cada contracção – a única forma de analgesia de que dispomos, e já várias vezes antes me chamou, preocupada, a dizer que há um feto em sofrimento que tem de ser transferido para o Hospital distrital, onde há um bloco operatório. Nem sequer consigo imaginar como é que ela, sem auscultar o feto, percebe o que se passa, mas quando me pede para chamar a Irmã Lurdes para transportar a mamã, quase invariavelmente tem razão, tal como posteriormente se acaba por confirmar no Hospital distrital. 

É portanto, à D. Catarina que levo a avó, que deve ter bem mais de 40 anos, ou seja, já idosa para os padrões africanos. Exponho-lhe a situação após o que se levanta seriamente, sem uma palavra. Deve talvez ir tentar encontrar uma ama de leite entre as várias puérperas do Hospital, penso. Mas, para meu assombro, regressa pouco depois com um preparado de ervas que fricciona no peito da mulher e dá-lhe a comer uma espécie de leguminosa crua de que não percebo o nome e que ela ingere sem um protesto, enquanto a D. Catarina lhe estimula o peito. Não sei porquê sinto-me nitidamente a mais neste momento, há qualquer coisa que não compreendo e onde não pertenço... Retiro-me, pois, no momento em que a D. Catarina lhe coloca o bebé ao peito. Quando regresso, ao fim da tarde, o bebé já começou a mamar um pouco e a avó parece animada. Dias depois, o bebé tinha recuperado algum peso e interroguei a avó, por curiosidade, sobre que altura tinha o seu filho mais novo (já desisti de perguntar a idade...). Pela resposta devia ter uns dez anos... 

Perguntei depois à D. Catarina como conseguira tal coisa, ao que ela respondeu, muito simplesmente, “Não fui eu, foi o bebé. São os filhos que fazem o leite das mães!” É incrível! Não que eu não soubesse esta lição da Fisiologia, mas ver resumido de forma tão simples e em forma de adágio aquilo que eu tinha aprendido com hormonas e feed-backs negativos deixou-me simplesmente atarantada... Mais ninguém parece surpreendido com este autêntico milagre! Explica-me depois a Irmã Florinda, uma jovem africana da minha idade, que se trata de uma situação muito habitual nesta cultura e são as avós ou as tias que assumem o cuidado e a amamentação dos recém-nascidos quando as mães, por qualquer razão faltam. Tempos depois, já de regresso a casa, viria a descobrir que este fenómeno, que me pareceu tão exótico e culturalmente estranho, e que eu conhecia no reino animal mas não me parecia possível entre os humanos, não é assim tão raro e é actualmente alvo de vários estudos científicos. Eu só falo por mim, mas há tanto a aprender com África...

Dr. Patrícia Lopes - Médica

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