O Senhor Formiga

Sálama, caros amigos benfeitores.
Espero que estejam todos bem.

Hoje poderia falar do meu xará-elevado-ao-quadrado, cujos dois nomes são o meu apelido [impressionante as coisas que se descobrem no mato], ou de um jovem que, por mais barras de sabão e reforços à necessidade de manter a higiene num nível aceitável, não deixa de me impressionar com a falta de cuidado pessoal que impede a cicatrização de úlceras profundas nos pés.  Poderia falar-vos de cada um dos 81 leprosos de Mitande que os benfeitores apoiam de forma tão generosa, mas vou apenas focar-me num deles, cuja alegria contagiante contrasta com os desafios [não dificuldades, porque ultrapassadas de forma muito positiva] que a lepra lhe proporcionou.

Foi o primeiro leproso de Mitande de que ouvi falar, ainda em Portugal, quando a Irmã Cristina me pedia, se possível, que transportasse uma guitarra para o Senhor Formiga. Talvez pela associação à história secular de Esopo, ou talvez porque a minha gata de estimação preferida se chamava formiga, confesso que achei deliciosa a coincidência de nomes… afinal “Formiga”, para além do árduo trabalho durante o Verão, também se senta com a cigarra ao luar cantando músicas ao sabor do vento.

Quando vim, não foi viável trazer a tal guitarra e este caso ficou arrumado numa gaveta do meu inconsciente, até que, em Julho, quando consegui completar a visita a todas as comunidades onde existem leprosos, percorrendo, para tal, mais de 200km pelo mato africano, encontrei o senhor Formiga na última comunidade visitada. A lepra não diagnosticada e tratada a tempo roubou-lhe os pés, as mãos e a vista, tornando-o dependente para as actividades da vida diária, mas nem por isso lhe tirou a força de viver. Conhecido por muitos como um verdadeiro amigo, é gentilmente cuidado pelo irmão, animando de uma forma muito particular as reuniões em Chitinge - a comunidade a que pertence.

Quando o conheci, em Julho, falei-lhe da impossibilidade de transportar a guitarra, ao que prontamente substituiu o pedido da guitarra por um rádio. Compreendi o pedido como uma necessidade de o ligar ao mundo, a um mundo alegre, em que a música possa elevar a sua alma à dança cujo ritmo o corpo já não tem capacidade de acompanhar, e a sua imaginação a lugares cujas cores os seus olhos jamais verão.

Em Outubro, nas consultas de enfermagem que faço individualmente a cada leproso em cada comunidade, as primeiras palavras do Sr. Formiga foram: onde está o meu rádio? Coloquei-lhe na mão um rádio oferecido pelas Irmãs da Apresentação de Maria, por sinal também esses oferecidos [fico sempre perplexa quando penso na corrente de solidariedade que existe no acto de entregar algo a alguém...]. Ali, naquele local, o rádio não funcionou, mas espero que na sua casa funcione, e, conforme prometido, em Dezembro há-de cantar-me uma das músicas que ouvir no rádio. 

Serei eu a cigarra que, no Inverno, depois de ter trabalhado muito pouco para construir a felicidade, vou desamparada até sua casa e lhe bato à porta procurando o segredo para ser feliz?

Fátima Santos
(Voluntária da APARF)

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