MITANDE / MOÇAMBIQUE

Pelas 6h15 entra pela janela do quarto um quente raio de sol; vejo-o, ainda com os olhos semi-cerrados, entre o colorido da cortina de capulana e a rede mosquiteira. Ainda é cedo para começar o dia, e, portanto, ponho-me a recordar… Os meses de formação na APARF e a ânsia de chegar ao destino, a expectativa criada no Curso de Fontilles, a decisão definitiva do local e todos os percalços que esta decisão acarretou, a viagem, a estadia em Maputo, a chegada a Lichinga e, depois, a viagem até ao destino final, vivida de forma intensa, enquanto me apercebia do que deixava para trás: o chuveiro e a água quente no banho matinal, o ferro de engomar eléctrico, o frigorífico e a água sempre fresca, a máquina de lavar roupa, a água a sair da torneira, a electricidade no quarto, o supermercado... Recordo a recepção muito acolhedora pelas Irmãs Teresianas, pelo povo e pelo pessoal do Centro de Saúde.

Iniciei o trabalho com as pessoas atingidas por lepra. Na sua generalidade com tratamento completo, mas a quem falta muita informação acerca da doença em si, do tratamento e do que se espera com este. O trabalho realizado pelas irmãs e apoiado por todos os amigos e benfeitores da APARF ao longo dos anos é nítido e, apesar das sequelas, as pessoas vítimas de lepra estão muito bem integradas na sociedade.

Ainda é cedo para sair debaixo da rede mosquiteira.

Recordo agora o trabalho no Centro de Saúde, especificamente na Maternidade, onde colaboro todas as manhãs. Já tive experiências muito gratificantes e outras menos… Lembro-me daquele dia que tudo teria para ser tranquilo: 10 consultas pré-natais, 3 consultas pós-parto [todos partos fora da maternidade], um bebé com infecção respiratória e uma senhora em início de trabalho de parto. Lembro-me de que, para o caso de uma senhora com mastite, peguei na bicicleta e, escolhendo cuidadosamente o carreiro da estrada em que a terra está mais batida [que o resto é areia e aí a bicicleta não anda] e rezando a todos os santinhos para que as cabras não atravessassem nessa pequena porção de terra batida [que não tenho travões e não desejo colidir com caprinos] vim a casa buscar antibióticos, já que há ruptura de stock de medicamentos na farmácia. Ao regressar ao Centro, uma senhora numa mota, com uma criança às costas bem protegida do sol com capulanas apresentava o caso: a criança nascera ontem, em casa [calo a minha consciência quando se põe a pensar em condições de higiene, que casa aqui significa palhota], e a mãe da parturiente achava que a criança não estava bem, pelo que a trazia para ser observada… e começa de tirar a criança das costas e tirar capulanas. Sai uma capulana, e sai outra e aparece uma capulana bem embrulhada [pergunto-me como a criança respira], e tira outra capulana, e tira um cobertor, e o embrulho das capulanas já é tão pequeno que considero a hipótese de que a senhora se esqueceu da criança em casa… mas não, ali estava ela, uma criança minúscula. Muito fria, apesar de todas as capulanas e da temperatura ambiente rondar os 30ºC, e com sinais vitais que não me deixaram descansada. Coloquei-a ao colo e, com as mãos por cima dela na tentativa de a aquecer, procurava formas de salvar aquela pequena vida.

- Calculando as necessidades hídricas, podemos hidratar. Temos cateteres periféricos pediátricos?
- Não, só de adulto.
- Podemos tentar dar um pouco de leite por copinho, a mãe vai chegar quando?
- Há-de vir.
- Temos oxigénio?
[Risos]
- O que foi? Nem uma botija?
- Nada!
O desfecho deste dia foi triste. Tive de fazer o pior diagnóstico que um profissional de saúde pode fazer… apesar de a mãe ter chegado em pouco tempo, senti a última ventilação poucos segundos depois. Vi duas lágrimas a correr no rosto da jovem mãe: as únicas lágrimas que foram vistas, porque, agora, todo o ritual fúnebre será feito com uma capulana a cobrir a sua cabeça. Por vezes, temos mesmo de deixar a natureza seguir o seu caminho.

Olho para o relógio: 6h40. Decido finalmente sair debaixo da rede mosquiteira e iniciar o dia. Mal eu sei que hoje, quando chegar ao Centro de Saúde, estará uma grávida na sala de partos a minutos de dar à luz e que todas as circunstâncias naquele momento me levarão a fazer o meu primeiro parto e auxiliar o nascimento de uma menina.

Mitande, no tempo colonial, era chamado de Belém… gosto de associar este nome aos milagres de vida a que assisto diariamente.

Fátima Santos
(Voluntária da APARF)

Comentários