Missão de uma médica em Moçambique

É domingo, são 15 horas e estou de volta ao hospital. Deixei a enfermaria ontem à noite e por isso não consigo evitar este peso de consciência. Eu sei que é absurdo, mas não consigo lutar contra este sentimento de culpa e de ansiedade. Já percebi o que pode acontecer na enfermaria quando me ausento mais do que algumas horas apenas… De tal forma vinha preocupada que nem me dei conta de que ia em rota de colisão com o impagável casal de perus, que não arredava pé da porta do hospital. Ficaram, mais uma vez, furiosos comigo.  Aliás, começo a compreender a expressão “estar aborrecido que nem um peru”. É uma expressão que podia muito bem ter sido inventada em Iapala. Conta-se até que certa vez este casal pouco amigável perseguiu o próprio presidente Guebuza, quando ele um dia se deslocou à missão em campanha eleitoral. Iapala é uma zona em que a população é maioritariamente pelo partido da oposição e, por isso, diz-se, que não tinha recolhido os perus de propósito! Mas adiante…

Desvio-me dos perus, que hoje até estão calminhos, coitados, e vou direita à pediatria. Estou preocupada com uma criança que internei ontem à tarde com uma crise de asma grave. Tal como eu temia está de cama, o que quer dizer que só pode estar pior. E confirma-se: a dificuldade respiratória acentuou-se de tal modo que o menino já nem tolera a posição de deitado. A mãe, como sempre, não arreda pé do seu lado, mas está apenas a assistir a tudo, impotente.

Antes desconcertava-me o olhar vago e a passividade com que presenciavam a doença até ao desenlace final. Arrepiava-me que nunca pedissem ajuda, que nunca me avisassem de que a criança estava pior, que ficassem apenas a assistir a tudo sem sequer tentar interferir. De tal forma isto era sistemático que uma tarde, acabada de chegar de mais uma saída na campanha de vacinação com a Irmã Lurdes, entrei na enfermaria e perguntei em voz alta em macua para todas as mães: “Está tudo bem com os meninos?” Ninguém respondera. Descansada porque, pelo menos naquele momento, não parecia haver nenhum caso grave, fui bucar os processos para começar a observar as crianças. Nem dois minutos depois ouvi um grito: “Ah, mwanaka!” (“O meu filho!” grito das mulheres macuas quando morre um filho ou pressentem a sua morte iminente). Uma criança, internada poucas horas antes com uma anemia grave, tinha acabado de falecer mesmo nas minhas costas…

Quase me enfureci nessa altura. Era de desesperar! Como era possível? Eu tinha estado ali. Eu tinha perguntado se estava tudo bem. Qualquer mãe teria pedido ajuda… Será que lhe era indiferente a morte de um filho? Mas não. Não era assim tão simples. Nunca ninguém disse que era simples ser médico em África… E também nunca ninguém disse que era simples resolver os problemas de saúde que assolam todo o continente. Se fosse simples, a situação talvez não fosse tão catastrófica.  

In A Missão - Diário de uma médica em Moçambique - Dra. Patrícia Lopes

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