As "Meninas das Irmãs" - Parte III

(Continuação...)

É domingo e já estou em Iapala há mais de quinze dias... Continuo fascinada pelos cânticos, pelas músicas, pelas danças, pelo ritmo do dia a dia, pelas brincadeiras das crianças, o sorriso permanente de quem sofre e mesmo assim canta o dia inteiro. Amo a língua macua desde o primeiro dia. Atrevo-me a dizer que é a língua mais bonita que conheço, e já consegui aprender o suficiente para me autonomizar minimamente no hospital. 

É domingo, são 15 horas e só agora acabámos de almoçar porque de manhã fomos à missa a uma aldeia a oito quilómetros da missão e resolvemos ir a pé com as meninas, para termos tempo de conversar com cada uma que quisesse. Ideia fantástica, a dos passeios ao domingo de quinze em quinze dias! Durante a semana temos sempre tanta coisa para fazer que não há muito tempo para estar com cada uma, apesar dos momentos depois de jantar continuarem a ser sagrados para conversar, saber as notícias do dia, ouvir angústias e desabafos. Mas não é a mesma coisa. Numa actividade em conjunto ao ar livre há obstáculos a passar, cumplicidades que se estabelecem, surpresas que aparecem, criam-se laços que não se criam de outro modo… e conseguimos sempre afastar-nos facilmente de forma discreta e casual para conversar individualmente.

A meio do passeio, pelo canto do olho, vi a Artemisa respirar fundo, como que a ganhar coragem para se aproximar:
– Tia Patrícia, posso conversar consigo?
Atrasei o passo…
– Sim, claro, princesa, com muito gosto!
– A tia Patrícia no outro dia perguntou-me se eu já era menstruada. Como foi que adivinhou?
Engoli em seco... ela tinha ido direita ao assunto.
– Bem, eu sou médica, como tu sabes... reparei que ainda não tinhas o peito desenvolvido...
– Sim, mas não foi só isso. Eu podia ter só o peito pequeno e estava com uma blusa larga.
– Bem… sim, tens razão.
Mas como é que eu poderia explicar, assim de chofre, a uma menina, nascida e criada no meio do mato, numa sociedade cheia de ritos, crenças e tabus que ela tinha uma doença genética?
– Mas, tia Patrícia, tia Patrícia sabe por que é que eu ainda não sou mulher? Isto é feitiço ou é doença? Todas as pessoas me dizem que não sou mulher porque o meu pai, depois de a minha mãe morrer, se casou com uma esposa que não era macua e por isso eu agora tenho uma doença tradicional... Ou então que é feitiço...

Estava impressionada com a forma directa com que ela abordava um assunto que certamente a oprimia, lhe quebrava a auto-estima e a haveria de impedir de ser feliz. Ela devia ser uma mulher de armas! E parecia ter as ideias claras. Pelo menos tinha crítica sobre as crenças tradicionais...
– Ao certo não sei, mas posso ter uma ideia, Artemisa...

Lá me enchi de coragem para explicar, da maneira mais simples e leve possível, os fundamentos da doença. Surpreendeu-me ao reconhecer de imediato os conceitos de “cromossomas” e “genes”. Percebeu perfeitamente o que eu lhe estava a querer transmitir. Mas a surpresa maior ainda estava para vir:
– Pois, tia Patrícia, no ano passado, na décima classe, aprendemos as doenças dos cromossomas e eu, depois de estudar, pensei que podia ter a Síndrome de Turner porque estava escrito que as pessoas com Síndrome de Turner têm um pescoço largo, os mamilos afastados, os pés inchados e são inférteis. Mas não tinha a quem perguntar para confirmar... 

Não podia acreditar... Uma jovem, criada numa povoação em que o analfabetismo quase atinge os três dígitos, tinha feito o diagnóstico a si própria de uma doença genética! Falámos longamente. Expliquei-lhe que havia tratamento, que o tratamento era simples, que em princípio haveria de menstruar se o fizesse correctamente. Mas que não poderia ter filhos, poderia adoptar crianças, se quisesse, mas não poderia ter filhos seus. Perguntei-lhe se queria fazer o tratamento. A face iluminou-se numa euforia sem precedentes! Era o seu sonho de ter um lugar na sociedade, um lugar que lhe estava a ser injusta e cruelmente negado! Estávamos a chegar à igreja quando lhe prometi que lhe enviaria o tratamento de Portugal. E a missa foi, mais uma vez, uma cerimónia apaixonante. 
Claro que quando cheguei a Portugal não descansei enquanto não arranjei forma de enviar a medicação necessária para induzir uma puberdade artificial à minha menina-prodígio. Dois anos depois, a Artemisa escrevia-me uma carta extraordinária! Dizia-me: “Tia Patrícia, apanhei a primeira menstruação dezoito meses depois de ter começado a tomar os comprimidos que me enviou. Agora sou uma mulher forte, ganhei corpo, tenho peito e me sinto bem na minha nova vida! E tenho uma novidade para dar a tia Patrícia: eu sempre quis entrar para a vida religiosa e ser Irmã, mas todos pensavam que era apenas um refúgio para mim, porque eu não era mulher e podia ser uma maneira de encontrar um lugar na sociedade de outra maneira e não uma verdadeira vocação. Mas agora que fui iniciada e já sou adulta, fiz o pedido novamente e aceitaram-me nas Irmãs da Caridade! Estou muito feliz e lhe agradeço muito por isso.”

Patrícia Lopes (médica)



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