As "Meninas das Irmãs" - Parte II

(Continuação...)

Recordo que foi nessa tarde que, no meio das meninas, houve uma que de raspão me fez reparar nela porque tinha uma face que me pareceu estranha. Uma face estranha mas ao mesmo tempo estranhamente familiar... [Os cinzentões da Pediatria chamar-lhe-iam facies sindromática, mas eu não costumo ter dessas pretensões, muito menos no meio da savana, e portanto não lhe chamei nada. De qualquer modo naquele momento estava demasiado ocupada a derreter-me com as danças, os cânticos e os batuques de boas-vindas e a deslumbrar-me com a algazarra que sessenta adolescentes conseguiam fazer...] Ficou-me apenas uma estranha sensação nas traseiras da mente. 

Nessa tarde quis ir dar um passeio de reconhecimento nos bairros das redondezas. Precisava de compreender, pelo menos de relance, as condições de vida das pessoas que acorriam ao hospital, e uma das meninas que se ofereceu para me acompanhar era, por coincidência, a mesma que me tinha chamado a atenção pouco tempo antes. À segunda vez que olhei melhor para ela, percebi o que era que ela tinha de especial: um pescoço largo com uma espécie de “asas”, um tronco também largo e uma face um pouco grosseira. Olhei para o peito dela e percebi uma total ausência de volume sob a blusa. Tinha Síndrome de Turner, de certeza. [Para quem não está familiarizado com doenças genéticas, posso explicar que ela era menina, mas tinha nascido sem um dos cromossomas X.]
Aproveitei o passeio para meter conversa com ela:
– Como te chamas?
– Artemisa, tia Patrícia.
– Que nome tão bonito. É o nome de uma planta medicinal, sabias?
– Sabia, sim, as Irmãs já me tinham dito.
– E sabes que remédio se pode fazer com ela?
– Remédio para a malária.
– Isso mesmo! E em que classe estás na escola?
– Estou na décima primeira.
– Ah, muito bem. E quantos anos tens?
– Tenho vinte.
– Olha... e diz-me uma coisa, já és menstruada?
– Não, tia Patrícia – o seu olhar, subitamente infeliz, fez-me perceber a minha horrível falta de tato –, ainda não...

Calei-me durante um bocado e tentei desviar a conversa, enquanto me sentia culpada por ter recordado assim de chofre àquela menina, ainda para mais em frente da sua amiga, que ela ainda não era mulher. E enquanto prosseguia a conversa sobre o dia a dia na escola, fui fazendo, angustiada, um filme sobre a desgraça que se abateria sobre aquela jovem. 

Para qualquer adolescente de uma sociedade dita desenvolvida, não chegar à puberdade e não menstruar pode ser muito perturbador, mas em África, isso implica um total aniquilamento social! Não sendo menstruada não poderia participar nos ritos de iniciação e, portanto, nunca poderia ser tratada e reconhecida como adulta. Ficaria para sempre interditada de ter um lugar na sociedade, de tomar parte em cerimónias tradicionais, em festas de adultos, não poderia assistir a ritos fúnebres – os mais importantes ritos das sociedades africanas. Seria sempre tratada por todos como uma criança. E escusado será dizer que não se poderia casar porque nenhum homem aceitaria como esposa uma mulher que não tivesse cumprido a iniciação e, pior, que claramente não pudesse ter filhos. A única condição que confere estatuto social a uma mulher africana é a maternidade e as mulheres que não conseguem conceber são ostracizadas. Esta menina estava condenada a ser infeliz, sem apelo nem agravo...
– Desculpa, Artemisa, acho que te magoei quando te perguntei se já eras menstruada – disse-lhe por fim –, mas se quiseres falar sobre isso um dia, fica à vontade.
– Sim, tia Patrícia.

Estávamos a aproximar-nos de um rio, onde mulheres e crianças tomavam banho, lavavam roupa e chapinhavam, tentando refrescar-se do calor do fim de tarde. A vegetação perto do rio era cada vez mais densa. Comecei a ficar nervosa por não conseguir ver bem onde punha os pés.
– Costuma haver cobras por aqui, Artemisa?
– Não muito, tia Patrícia, só mesmo crocodilos…
Arrepiei-me, subitamente gelada. Crocodilos, valesse-me São Francisco de Assis? 
– Estás a brincar?
– Não, tia Patrícia.
– Mas estão pessoas a lavar a roupa, crianças a tomar banho, não há perigo?
– Sim, há perigo, mas é d’fícil eles aparecerem a esta hora da tarde. Aqui há sombra e eles gostam di sol...
– Mas já tem havido acidentes?
– Sim, às vezes há acidentes com crocodilos.
– E mesmo assim as pessoas permanecem tanto tempo expostas ao pé do rio?
– Ah, tia Patrícia – um sorriso condescendente –, os acidentes só dependem do destino das pessoas...

Voltámos para casa quase ao anoitecer… Eu vinha menos alegre, pensativa, perturbada com a miséria e a dureza do dia a dia com que me tinha deparado, perturbada com o diagnóstico de Síndrome de Turner que tinha acabado de fazer, com todas as suas implicações para a vida da menina, estava triste com a minha própria precipitação, por ter iniciado a conversa de forma tão desastrada e não ter sabido depois conduzi-la de forma construtiva. Apreensiva com a passividade em relação ao futuro que mais uma vez tinha percebido no povo, uma atitude que me doía por dentro por saber que, em parte, era responsável pela desistência das pessoas em lutar por uma vida melhor, pela falta de empreendedorismo e de planeamento… No fundo era um dos factores que claramente perpetuava o ciclo da pobreza.

(Continua...)
Patrícia Lopes (médica)


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