As "Meninas das Irmãs" - Parte I

Era o meu primeiro dia como médica voluntária na missão de Iapala, no norte de Moçambique. Foi um dia relativamente leve e ao início da tarde eu já estava sozinha a trabalhar. A língua era uma barreira, mas de uma maneira ou de outra, com a ajuda de alguns familiares que falavam português e com uma linguagem gestual improvisada, já tinha orientado de forma mais ou menos satisfatória os mais de trinta doentes que tinham vindo à urgência. 

Já estava quase pronta quando duas meninas me apareceram na sala de urgência para me chamar para almoçar: eram duas das sessenta adolescentes que viviam com as Irmãs, num lar anexo à casa, para poderem estudar durante o ano letivo. Muitas eram órfãs, a maioria com famílias demasiado pobres para conseguirem pagar sequer um décimo da estadia, quase todas com histórias de vida tão terríveis que podiam fazer qualquer adolescente perder a vontade de se levantar da cama todas as manhãs. Só iam a casa nas férias e voltavam sempre mais magras, com doenças por tratar e com mais histórias tristes para contar... Mas tinham uma força e uma alegria de viver contagiantes. 

Em Iapala elas eram “as meninas das Irmãs”. Tinham uma cama, comida todos os dias, água nas torneiras, luz dentro de casa, livros e cadernos para estudar. Nunca iam ao hospital sozinhas e portanto, sob os mil olhos atentos das Irmãs, eram sempre bem atendidas. Na escola os professores pensavam sempre duas vezes antes de lhes pedirem subornos ou favores sexuais porque sabiam muito bem no que se estavam a meter… em tudo o que tivesse a ver com as suas meninas, as Irmãs eram umas autênticas leoas. Defendiam-nas com unhas e dentes e, portanto, se fossem descobertos, os professores corriam o risco de perder o emprego e já não seriam os primeiros a ir para a prisão. 

Mas se fora de casa eram protegidas pelas Irmãs e pela sua reputação de leoas, dentro de casa estavam longe de serem tratadas nas palminhas. Como quaisquer adolescentes que se prezem davam água pela barba a quem as acompanhava! Ansiedades, angústias, dúvidas, namorados, doenças – verdadeiras ou imaginadas –, saudades de casa, intrigas com as amigas, todas as noites aquela casa era uma animação. Uma telenovela das antigas. Mas eram aqueles os melhores momentos, os que passávamos sentadas na varanda, ao fim do dia, olhando a lua que subia sobre o monte Iapala, as queimadas a arder aqui e ali, a tentar impingir umas às outras o cão mais chato à face da terra, permanentemente a roçar-se em nós e a pedir festinhas. As meninas vinham ter comigo e por lá ficávamos, lado a lado, a namorar a noite e a conversar, todas com a difícil tarefa de tentar compreender o mundo e crescer dentro dele...

Nessa tarde, a Irmã Lurdes veio chamar-me depois da sobremesa: “Venha tomar café aqui na varanda, que as meninas querem conhecê-la.” Saí para a varanda que dava para o pátio, onde sessenta meninas me esperavam, todas juntas e com um sorriso. Cumprimentei-as, apresentei-me, disse quem era e o que vinha fazer. Elas continuavam em silêncio. Até que lhes perguntei: “E vocês, não se querem apresentar?” 

Duas ou três começaram então, casualmente, a entoar uma música simples mas lindíssima, cantada em Macua, que queria dizer apenas: “Bem-vinda, você é linda, queremos conhecê-la.” À segunda ou terceira repetição comecei a ouvir, algures, no meio delas, o som de tambores, que descobri depois que eram três enormes batuques que estavam estrategicamente escondidos onde eu não os podia ver. Do centro daquele aglomerado, uma menina deu dois passos à frente e começou a dançar, numa dança lenta e despretensiosa, quase sem sair do lugar… depois passaram a ser duas, depois cinco, numa dança mais rápida e mais elaborada. De repente, sem que se percebesse qualquer sinal, as outras organizaram-se em filas e começaram a acompanhar a música com palmas e juntaram-se ao cântico, entoando a mesma música a várias vozes, nem sabia dizer quantas. Afinadíssimas, aquelas vozes quase brancas… Por fim, cada uma a seu tempo, todas entraram no espectáculo e cantavam e dançavam, entre alarido, palmas e gargalhadas, num crescendo vertiginoso, cheio de vida e entusiasmo. Elas queriam surpreender-me e mostrar-me do que eram capazes… Dançavam uma dança cada vez mais elaborada, sempre igual, mas reinventada até à exaustão, que não me deixava despegar os olhos, sem querer perder cada pormenor, enquanto, duas a duas, subiam as escadas e me vinham cumprimentar pessoalmente. Aquela encantadora dança de boas-vindas demorou quase meia hora e deixou--me completamente rendida… Nunca tinha assistido a um espectáculo assim, tão simples, tão surpreendente e arrebatador… e de propósito para mim!

(Continua...)

Patrícia Lopes (médica)



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