Um dia com o Ricardo

A Eugénia, enfermeira portuguesa, voluntária no Hospital de Marrere, acompanhou o Ricardo (voluntário da APARF ao serviço dos doentes de lepra) e conta-nos um dia de trabalho.

A viagem de mota com o Ricardo até foi bem divertida. Decorridos poucos quilómetros os meus receios ficaram ultrapassados e consegui cumprir o prometido.De facto, há locais onde os voluntários só podem chegar por este meio de transporte, e alguns só durante a época seca, devido ao caudal dos rios na época das chuvas.

A “brigada” desta vez deslocava-se em duas motas. Eu viajava com o Ricardo e a Vanda com o Enf. Rajá que é o colega responsável pelo Programa Nacional de Controle de Lepra e Tuberculose no distrito de Murrupula.

Na localidade de Baroni -1, no espaço social da aldeia (um enorme terreiro com uma refrescante sombra de uma frondosa mangueira) éramos esperados pelo “activista” Sr. Alberto e ainda por cerca de 150 pessoas, das quais a maioria eram crianças. Tratava-se de uma concentração, ou seja uma reunião, para a qual são convocados os antigos doentes, as pessoas que apresentam manchas na pele e ainda outras pessoas com alguma doença para beneficiarem da visita do Enfermeiro Rajá. Feitos os cumprimentos e as apresentações das forasteiras (eu e a Vanda), o activista deu início à sua palestra sobre a Lepra, abordando os aspectos ligados ao diagnóstico precoce, ao tratamento e formas de acesso aos medicamentos específicos desta doença. Em seguida, o Enfermeiro Rajá fez uma sessão de esclarecimento sobre a tuberculose pulmonar, com o objectivo de alertar as pessoas para os sinais e sintomas da doença, de forma a estimular a população para a procura dos técnicos de saúde. Entre os doentes, destacava-se um homem já de idade (a esperança média de vida é de cerca de 40 anos) que seguia muito atentamente as exposições. O Sr. Poeira, fez algumas perguntas e revelando algum talento para as artes cénicas, encenou ali algumas questões resultantes do isolamento, que é necessário para evitar a transmissão da tuberculose. Mais uma vez, ressaltaram neste contexto, as crenças que sustentam alguns comportamentos de risco face à transmissão desta doença, pois as pessoas preferem manter o convívio com  os doentes sem as necessárias precauções, em vez de as conduzirem aos locais, onde podem iniciar o tratamento, e por esse facto, fazer um período de separação da família.

Concluída esta sessão de formação dirigida àquela população, as pessoas que apresentavam manchas suspeitas de lepra foram observadas pelo Ricardo e Enf. Rajá e felizmente não foram sinalizados novos casos. O Ricardo, não tinha qualquer formação na área da saúde (à excepção do curso de lepra), quando iniciou o seu trabalho de voluntário. No entanto cumpre muito bem o que a Associação espera dele, ou seja, contribuir para o despiste precoce deste flagelo, apoiar os antigos doentes, colaborar com o Responsável do Programa, e minorar o sofrimento dos mais pobres através de pequenas ajudas, para além de estimular e apoiar o trabalho do grupo de voluntários, que estão na base e sustentam este projecto. 

Havia vários casos de sarna (doença muito comum) na população africana devido à falta de higiene. Costumo dizer que, muitos problemas de saúde se resolveriam com muita água e sabão, consumo de água potável, comida e desparasitantes. Para acudir às necessidades de tratamento de sarna, o Paulo Bica (anterior voluntário da APARF na Missão de Murrupula) e eventualmente dotado com uma costela de druida ou curandeiro, confeccionou uma pasta feita com sabão, óleo, açúcar e um desinfectante (savlon) que tem dado muitos bons resultados. Claro que, as medidas de higiene que se aconselham, quando se distribui a pomada, o estímulo ao arejamento das esteiras, o recurso a roupa limpa após a aplicação da pomada, são aspectos muito importantes, mas não retira o mérito nem as propriedades terapêuticas deste remédio caseiro. Este fica muito barato, é distribuído gratuitamente, e ninguém ficou  por tratar pois o Ricardo levava a mochila bem recheada de saquinhos de plástico com a pomada. Exige-se um planeamento cuidadoso do trabalho, previsão de contratempos e problemas que podem inviabilizar a execução do trabalho, porque os doentes de lepra não podem interromper o tratamento, e as avaliações da evolução da doença obedecem a um calendário próprio. 

O Enf. Rajá fez algumas consultas e distribuiu medicamentos para combater os sintomas que muita gente apresenta (dores de coluna “muthana”, febres, dores de barriga “bexiga” e as famosas hérnias “chibatas ou conhunhos”. Aconselhou algumas pessoas a deslocar-se ao Centro de Saúde, pois tinham alguns sintomas que evidenciavam provável tuberculose. O Ricardo distribuiu sabão pelos antigos doentes, mães com bebés pequenos e pessoas com sarna e feridas cutâneas... Eu e a Vanda ocupámo-nos a fazer tratamentos às feridas mais graves. 

Terminados os trabalhos presentearam-nos com banana maçã, e uma galinha assada na brasa. Estes gestos simbolizam o agradecimento da nossa visita, pois apesar de muito pobres gostam de receber e tratar bem os visitantes.
Quando iniciámos a viagem de regresso, o sol estava a pique e fustigava-nos com a sua inclemência. A corrente da mota do Ricardo saltou do lugar, o que obrigou a uma paragem inesperada. Não pude ajudar, pois foi necessária a intervenção do Rajá que, tendo dado pela nossa ausência, voltou atrás e ajudou a solucionar este pequeno acidente.

Aqui os voluntários têm de ser polivalentes, criativos, empenhados, aventureiros, abnegados, resistentes, pacientes, ter capacidade de adaptação ás circunstâncias, caso contrário não poderão dar resposta à multiplicidade de problemas que diariamente acontecem, nem suportar o esforço diário das deslocações feitas em condições muito difíceis.

No final deste dia posso confessar que o balanço desta experiência é muito positivo. Venci o medo de andar de mota, conheci o Sr. Poeira que revelou ser muito interventivo e com talento para o teatro e que no final da manhã desemperrou a língua e falou muito bem o português quando fez uma fotografia com a “mukunya”(branca). Constatei mais uma vez a pobreza e falta de condições do povo que vive em locais muito isolados, sem recurso a médico ou enfermeiro. Ao Ricardo antes de mais devo agradecer toda a paciência que teve comigo, as atenções na condução para que eu aguentasse as irregularidades do piso, a possibilidade de ter tido mais esta experiência, a disponibilidade em permitir que observasse o seu trabalho. Não é demais salientar o precioso contributo que, jovens como o Ricardo e a Vanda, dão para melhorar um pouco a vida de tanta gente anónima, que padece de um flagelo que, alguns dos que me lêem, só conhecem através da parábola da Bíblia.

Eugénia Ferreira

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