Socorro

A semana de trabalho não começa da melhor maneira.

Uma das primeiras crianças que atendemos tinha seis meses de idade e necessitava de iniciar tratamento com antiretrovirais por ter adquirido a infecção por transmissão vertical. A mãe não cumpriu as recomendações profiláticas durante a gravidez, a criança nasceu em casa. Não recebeu por isso os cuidados recomendados para o período perinatal e para o primeiro mês de vida. Felizmente tem o seu estado geral conservado, situação que gera relutância por parte da mãe em aceitar a situação. Foi enviada para os serviços competentes, mas não regressou ao nosso serviço, como lhe tinha aconselhado para iniciar apoio nutricional.

As crianças com consulta marcada começaram a aparecer, exigindo atenção e cuidados desde a avaliação antropométrica, registo das queixas, triagem, consulta, laboratório, farmácia, preparação de biberões para os esfomeados, etc. Vou registando as chegadas através dos cartões individuais das crianças, (que agora se esgotaram no hospital) e dou-me conta de mais duas novas crianças, os gémeos, Genita e Genito Esmael.

Vinham referenciados da sala de peso e vacinação por muito baixo peso. Dou início à avaliação de rotina e constato que a situação é muito grave. São bebés de nove meses de idade, mas o peso de ambos não atinge os nove quilos. A colheita de dados leva-me a suspeitar das causas que em regra conduzem a estas situações limite. A mãe frequentava o Centro de Saúde do Anchilo, depois tinha mudado de residência e então era essa a razão porque hoje estava na nossa consulta. Resumindo fizemos o teste rápido de HIV à mãe, uma vez que não trazia consigo a ficha de vigilância pré natal, e claro mais um tiro na “mouchão” (teste positivo para o HIV). Já aprendi que quando as mães iniciam a peregrinação pelos vários locais de atendimento das crianças, que informam desconhecer o seu estado relativamente ao teste HIV (de realização obrigatória na vigilância de gravidez) é de suspeitar que nos escondem alguma coisa. A carregar ainda mais este quadro ela era viúva recente, mas dizia não conhecer a causa de morte do pai das crianças. Tão grave quanto a negligência das mães, é a negligência e indiferença dos profissionais de saúde que deixaram passar esta situação, sem se preocuparem com as razões desta grave situação.

Uma avó vem pedir “socorro“ para a sua neta de 1600 gramas, que nasceu prematuramente de 32 semanas de gestação. A filha está internada no Hospital do Marrere para tratamento de tuberculose e não pode amamentar. Esta é outra situação que temos debaixo de olho, porque a avó não conhecia o estado de saúde da filha e nem sabia se a filha tinha feito vigilância de gravidez. Temos de averiguar com mais detalhe e pedir a ficha de grávida, não vá o diabo tecê-las! Porque à tuberculose pode estar associada a sida.

O Júnior Dalila, último bebé observado na sexta-feira apareceu como lhe tinha marcado de novo hoje. É o primeiro filho de uma jovem de 15 anos. Veio acompanhada da mãe e explicou que na família dela nunca nenhuma mulher conseguiu produzir leite para criar os filhos. Estranho, penso eu! A criança tinha já dois dias de vida, estava em jejum desde o nascimento à espera que aparecesse pelo menos uma gota de colostro, mas nada aconteceu. Então deixaram-se ficar em casa, não compraram leite para alimentar a criança. Ficaram expectantes, à espera da confirmação da “maldição” familiar (feitiço!!!) que impede as mães de dar leite.

Para finalizar a manhã, mais uma vez referenciada da sala de peso, um bebé com muito baixo peso para a idade. Quando observo a criança, confirmo que tem uma relação peso altura inferior a 70%, mas o mais grave é que estava exangue, tal era o grau de palidez palmar, da língua e da mucosa palpebral. Como é que é possível, perguntei ao pai da criança, não se dar conta que a criança está quase branca? Pois parece incrível, mas de facto vieram ao hospital apenas  porque era a semana de pesar a criança. Inexplicável!

Queria ainda dizer-vos que a Zaina, uma criança que iniciou a recuperação nutricional, vem pelo menos três vezes por semana ao nosso Centro para tomar dois copos de leite (F100) uma fórmula de leite enriquecida com um alto teor de gordura. Esta criança tem três anos de idade e pesa 5 quilos. Não, não estou a exagerar. É isso mesmo que estão a ler. Este é um dos casos mais dramáticos que temos neste momento. Sim, vigiou o peso regularmente num Centro de Saúde aqui perto, e que por sinal, é de onde nos chegam os casos mais graves. 

Para completar esta brilhante manhã, a Elisa enviou um sms a informar que a sobrinha está no Hospital Central. As parteiras, no hospital de província, provocaram-lhe uma rotura uterina além da morte do bebé (informação da Elisa) e por isso vai ficar por lá a acompanhar a situação. Que Deus nos ajude, que isto é demais!

Garanto-vos que não fiz uma selecção das diversas e estranhas situações que aparecem. Estas aconteceram mesmo todas na mesma manhã. 

Um grande abraço para todos.

Eugénia Ferreira (Enfermeira Voluntária no Hospital de Marrere)


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