Adama, Histórias que Fazem a Vida Valer a Pena - Parte II

(Continuação...)

Entretanto, meses depois, a menina já estava melhor e queria voltar para junto dos pais. Mas era arriscado... E se tivesse um AVC? E se a neuropatia voltasse? E se descompensasse com uma malária ou outra doença tropical? E se... e se... Foi inamovível. Queria voltar para casa. Como era possível, comentavam as pessoas... Como era possível alguém que tinha agora luz eléctrica, água corrente, acesso a todo o conforto e informação, acesso à educação também... como era possível querer voltar para o mato, para uma palhota?! Mas também havia quem a compreendesse... [Não, meus amigos, eu não era a única a compreender as saudades dela! A vida é mais simples do que pensamos. E não é preciso ter vivido no mato para saber que o preço a pagar por não ter o mesmo conforto é muito pequeno...] E, com a ajuda de uma voluntária do nosso hospital, foi possível angariar dinheiro para lhe pagar a viagem de regresso. 

Na mala levava medicação para um ano inteiro, a referência do médico que a poderia acompanhar, com quem tínhamos contactado a partir de Lisboa, a promessa de que lhe enviaríamos mais medicamentos com a ajuda dos tios quando tivéssemos um portador, um telemóvel para falar connosco e muitas recordações do carinho dos enfermeiros, auxiliares e médicos que a tinham apadrinhado e acarinhado naquela estadia tão longa no hospital... Fomos ao aeroporto despedir-nos. Também nos ia deixar saudades...

Meses depois, estava eu em casa a dormir, a recuperar do banco do dia anterior, quando recebo um telefonema de que reconheci num relance o indicativo da Guiné-Bissau: só podia ser da Adama, que me telefonava de vez em quando para dar umas atabalhoadas notícias, no seu português cada vez mais difícil de compreender. Daquela vez, a voz menos jovial pedia-me que lhe telefonasse de volta porque não tinha saldo. Em vão tentei ligar. Um sotaque africano insistia que me tinha enganado no número, que aquele não estava atribuído. Estranho. Muito estranho. Telefonei aos tios em Portugal, mas não tinham notícias dela porque tinham acabado de chegar do estrangeiro. Que de qualquer modo era sempre muito difícil contactar com ela porque na localidade onde vivia não havia rede de telemóvel. Só quando se deslocava a Bissau é que telefonava. Asseguraram-me que mais hora menos hora haveria de conseguir contactar com ela. “A rede lá é muito instável. Ora vai, ora vem.” Que continuasse a tentar, não havia mais a fazer. Tentei em vão. Fiquei perturbada. O que se passaria? Telefonei aos tios no dia seguinte, mas continuavam sem notícias.

Nessa tarde fiquei a saber pela directora do internamento que a Adama tinha falado com a voluntária que a ajudara a voltar para a Guiné e que lhe tinha dito que estava a passar fome, cheia de dores de cabeça e em todo o corpo... Gelei. Que ela não queria voltar para Portugal, não era nada disso, mas que estava a passar muito mal. Pensámos o pior... Para além do horror da fome poderia ter tido uma trombose... Que poderíamos fazer por ela? Uma coisa é certa, não tinha sido para isto que a tínhamos mandado de volta para a Guiné...

Só fiquei a saber do desenrolar dos factos na segunda-feira seguinte. A voluntária mais um vez tinha sido o seu anjo da guarda. A história foi mais ou menos assim: No momento em que tinha falado com a Adama, a voluntária estava no seu local de trabalho, ao lado de uma amiga, que por sua vez tinha um amigo riquíssimo, dono de uma ilha na Guiné, onde ia amiúde passar férias... Falaram com ele e o senhor tinha ficado muito sensibilizado com a história e, por um extraordinário acaso, iria para a Guiné no dia seguinte.

Conseguiram localizar a Adama em Bissau através de um jornalista, cujo contacto nos tinha sido dado pelo tio já no aeroporto,  no momento da partida. Segundo o tio, tratava-se de um senhor de toda a confiança e que falava bem a língua local, portanto podia fazer de intérprete entre o magnata da ilha e a nossa protegida... 

Ao que parece, o jornalista teve de interromper alegremente uma reunião com o Ministro do Interior para mediar a conversa! Quem me dera ser uma mosca africana para lá ter estado... No dia seguinte a Adama telefonou novamente à voluntária. A voz completamente diferente agradecia, porque já não tinha dores e estava tudo bem. Não telefonava mais porque ia regressar para Galumaro, a sua aldeia. A mãe da Adama também falou, com a voz embargada, uma única palavra em Português: Obrigada! As restantes palavras eram incompreensíveis, mas também não era necessário traduzir.

Lembrei-me há dias desta história, mas continuo a achá-la inspiradora. Foi extraordinária a corrente de solidariedade que se criou em torno desta menina tão especial para a ajudar a cumprir o seu desejo de permanecer junto da família. E é curioso que tudo quanto lhe pudemos dar no tempo em que cá esteve, desde ter aprendido a falar Português, a conhecer as letras, até ao tratamento da doença, passando pelos amigos que fez, nada disto teria sentido para ela se não tivesse podido voltar. Mas como dizia sempre a minha tutora, “Se eu tivesse a minha palhota, era na minha palhota que eu haveria de querer estar!”

Depois disto nunca mais tivemos notícias dela... Não tenho muitas ilusões, sei que a vida é dura, que no mato há muitas doenças e que a saúde dela era frágil. Mas quero acreditar que ela está bem, que a vida continua a ser simples e que a sorte lhe sorri uma vez mais todos os dias...

De vez em quando tenho vontade de a ir procurar. Não seria impossível talvez... Temos o nome dela, a localidade, a história de vida, da família e da doença. E já percebi, por experiência própria, que em África só não se encontra quem não quer mesmo ser encontrado. Quem sabe se um dia alguém não completa esta história?

Patrícia Lopes
(Médica)



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