Adama, Histórias que Fazem a Vida Valer a Pena - Parte I

Há alguns anos atrás, no meu primeiro ano da especialidade de Pediatria, internámos uma menina de 16 anos, vinda da Guiné-Bissau ao abrigo do protocolo de cooperação com os países de expressão portuguesa. A doença que a fizera vir fora uma cegueira grave e progressiva. A junta médica em Bissau tinha assinado a autorização para a transferência um ano antes, mas como quem tem a responsabilidade de pagar a viagem para Portugal é a própria família do doente, a menina tinha de esperar esse tempo todo até a aldeia em peso se ter conseguido movimentar para a ajudar a comprar uma passagem para Portugal. Uma passagem só de vinda...

Já no hospital, os tios com quem tinha vindo viver explicaram-me como tudo se tinha passado. Que a menina cedo começara a deixar de ver, mas que os pais tinham negado a doença inicialmente. 

Pensavam que era uma “doença tradicional”. 

- Uma doença tradicional? Mas porquê uma doença tradicional? - interroguei-os.

Ao que parece os pais pertenciam a etnias diferentes e terem-se casado significara a quebra de um tabu profundamente enraizado. Tinham traído os antepassados, renegado as raízes.  E sempre souberam que o facto de não terem conseguido resistir ao apelo daquele amor impossível poderia ter consequências graves nos filhos... A nossa menina tinha sido a primeira filha daquele casal. 

Chamaram-lhe Adama,  que significa “mulher bonita” e “amante ardente”, em honra àquela paixão arrebatadora que, apesar do sofrimento pela culpa, os fazia tão felizes.

Só quando os olhos de Adama passaram de escuros a azulados e,  por fim,  a totalmente brancos e a menina deixara de conseguir encontrar o caminho para o fontanário para ir buscar água para a família é que os pais se renderam à evidência de que não podiam continuar a fingir que não reparavam no que toda a aldeia já sabia... Foi então que começaram a procurar ajuda...

Seguira-se um longo périplo, primeiro com o curandeiro mais famoso das redondezas, que se recusara a ajudá-los por não haver remédio para a zanga dos antepassados. Desconsolados, procuraram outro curandeiro, igualmente conceituado mas muito mais longe, desta feita um homem de mente mais aberta, também ele casado com uma mulher de outra etnia e que delicadamente não se referira ao tabu quebrado pelos pais. Atribuíra a causa dos olhos brancos ao excesso de leite de cabra, que a menina bebia desde criança, já que o pai era criador de gado... Mas nada parecia ajudá-la. Acabaram por levá-la para um hospital em Bissau, onde ficou internada durante meses, sem que também pudessem fazer o que quer que fosse por ela... Até que se decidiram enviá-la para Portugal…

Durante o internamento connosco, a Adama foi operada e ficou a ver razoavelmente, mas percebemos que a menina não tinha só uma cegueira grave. Tinha também uma doença que a tornava susceptível a AVC e tromboses venosas, tinha alguns nódulos por baixo da pele e uma falta de sensibilidade nas mãos e nos pés… Apesar da minha experiência com doentes de lepra em Moçambique custou-me um pouco a encaixar tudo isto numa mesma doença, mas lá me rendi à evidência de que a doença da nossa menina era uma variante rara de lepra e começámos o tratamento. Dias depois teve uma complicação do tratamento de tal forma grave que quase pensámos que nunca mais a conseguiríamos pôr novamente a andar sem dores... Tentámos de tudo. Desde fisioterapia até medicamentos experimentais que precisavam de vinte assinaturas de organismos diferentes para os conseguirmos ter no hospital mas, finalmente, conseguimos exorcizar cada demónio do corpo dela, desde a dor até à falta de apetite e incapacidade. O tempo também ajudou. A constante boa disposição da nossa princesa e da equipa de enfermagem e de fisioterapeutas também.

Enquanto esteve connosco cativou-nos a todos. Aprendeu a falar Português, aprendeu as letras, os números, aprendeu a ler. Conheceu as ruas, a televisão, o computador, a internet, aprendeu a manusear os monitores do hospital, as bombas infusoras, aprendeu os nomes dos medicamentos e a função de cada um. Foi de fim-de-semana para casa de várias amigas, companheiras de quarto que conhecera no internamento. Não faltou quem se oferecesse para a levar para casa. Só não a conseguimos convencer a voltar a beber leite... “Problema de olho!”, respondia invariavelmente com um ar quase ofendido. Questão absolutamente inargumentável! Também acho que nunca aprendeu a gostar da nossa comida...

(Continua...)

Patrícia Lopes (Médica)

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