PÉS DO POVO

Geralmente poucos pensam nos nossos pés e lhes dão a devida atenção. Aqui em Moçambique, onde a maioria da população anda descalça, comecei a observar e a dar mais atenção a esta parte essencial do nosso corpo, pois é graças a eles que temos a capacidade de caminhar e ver o mundo com outros olhos e de outra forma.

A doença de lepra afecta a sensibilidade dos olhos, mãos e pés. Por esta razão torna-se muito importante e faz parte dos testes motores e sensitivos que se realizam aos doentes, a observação dos pés. Tenho visto pés muito diferentes, que a meu ver revelam muito sobre as condições sócio-económicas dos doentes que visito e contacto. 

No mato, nas zonas rurais que circundam a cidade de Namphula, observam-se, muitas vezes, pés descalços com gretas, com feridas e com as zonas plantares muito enrijecidas pelos trabalhos duros na machamba (hortas) que cada um faz para obter algum do seu sustento. Imagino que estas pessoas viverão com dificuldades e muitas vezes trajam de forma precária e sem condições. Geralmente acontece em locais onde o acesso de carro é difícil, em sítios longe da cidade e bem escondidos nas montanhas, onde poucos chegam, quer a nível da saúde, quer de educação, quer a nível do comércio… 

Visito também outros locais que me parecem ter mais condições, onde os doentes aparecem quase todos de chinelos calçados, bem apresentados, onde as superfícies plantares estão mais lisas, com aparência mais cuidada, sem ferimentos e com poucos sinais de quem trabalha na dura machamba de sol a sol, sem uso de calçado. Isto observa-se em locais onde o acesso aos cuidados de saúde é mais fácil; em que os doentes vivem perto da estrada principal onde passam transportes, onde há um acesso fácil a todos os meios, quer de saúde, educação, comércio, … 

Mas não se pense que observo sempre os pés dentro destes contextos. Muitas vezes no meio do mato, por detrás da montanha, aparecem doentes que trabalham exclusivamente nas machambas, que poucas ou nenhumas vezes saem dali para visitar a cidade e outros locais ditos mais civilizados, e observo-os com os pés em perfeitas condições, sem nada para registar na sua ficha após a sua reavaliação… e penso que nunca teria os meus pés em perfeitas condições como observo a doentes que nunca usaram uns sapatos, uns chinelos na vida e que trabalham no campo… Quando é o momento de lhes oferecer um par de chinelos novos porque terminaram o tratamento ou estão quase a terminá-lo e a oferta é uma forma de os motivar a finalizá-lo, vejo que ficam muito felizes com o gesto pois muitos nunca tiveram sapatos. 

No entanto, acabo também por constatar e aperceber-me que muitos doentes apenas usam o calçado oferecido nos dias de concentração pois não os querem estragar… querem mostrar-me que o conservam e que o usam apenas em situações e ocasiões especiais: para vir ter com a mucunya (branca em makua) no dia combinado ou para ir rezar ao domingo na igreja, mesquita ou noutro local de culto. Quando me apercebo disto tento dar a perceber a importância do seu uso diário para que protejam os pés, que podem ser muito afectados pela doença de lepra e pelas feridas tão difíceis de tratar e curar… Mas como não estão habituados a usar sapatos ou chinelos, que às vezes apenas os atrapalham ainda mais para caminhar, acenam-me com a cabeça em sinal de compreensão, riem-se para mim e lá os vejo de partida para as suas palhotas com umas “coisas novas e coloridas” nos pés. 
Julgo que basta um rápido olhar para os pés de um doente que frequenta as concentrações de lepra para que, de uma forma um pouco subestimada, grosseira e rápida, se possa tentar imaginar e distinguir a condição socio-económica de cada um. Se tem algumas posses, poderá ter um par de chinelos ou sandálias e ter os pés sem feridas, aparentemente cuidados; se for mais pobre, então poderá vir sempre descalço, poderá ter algumas feridas ou ainda poderá pedir um par de chinelos emprestados apenas para trazer à concentração.

A APARF tem oferecido calçado aos doentes de lepra que estão a fazer tratamento e aos doentes de lepra antigos, que já concluíram o seu tratamento há muito tempo mas que se cruzam connosco nas concentrações. Têm sido feitos pensos a várias úlceras e feridas provocadas pela lepra, umas mais complicadas que outras mas quase todas têm acabado por cicatrizar mais tarde ou mais cedo. Para complementar e ajudar neste processo de cicatrização, a APARF tem oferecido pomada e medicamentos aos doentes em questão. 

O uso de calçado é essencial para que os pés estejam protegidos. Ora são chinelos, ora sandálias, ora sapatos, tudo é oferecido pela APARF consoante as condições do doente e o estado dos seus pés…que afinal são um útil indicador que me ajuda a perceber as condições de vida muitas vezes difíceis deste povo moçambicano.

Mpakha nihiku nikina

Vanda - Voluntária da APARF em Moçambique

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