UM OLHAR SOBRE A SIDA

De braço dado com a fome, a pobreza, o baixo nível de instrução, as doenças tropicais, as doenças sexualmente transmissíveis e a tuberculose, o HIV / SIDA constitui uma forte ameaça para uma grande faixa de população moçambicana (estima-se que 16,2% da população).

Num dos discursos recentes, o Presidente da República classificou esta doença como uma pandemia, devido ao elevado número de pessoas atingidas e ainda porque os indicadores epidemiológicos existentes não são tranquilizadores. De facto estamos perante uma situação extremamente complexa, porque esta doença se inscreve num contexto sócio-  -cultural e economicamente muito desfavorecido ou seja de recursos materiais, financeiros e humanos muito escassos. Os gabinetes de aconselhamento e testagem voluntária (GATV) ainda não estão disseminados por todos os distritos, o número de técnicos bem como a sua formação são insuficientes, o número de médicos é muito escasso e não existem clínicos especialistas neste domínio. Os medicamentos antiretrovirais estão disponíveis gratuitamente nas farmácias de alguns centros de saúde e hospitais mas há frequentemente falhas no abastecimento, o que obriga a interromper o tratamento e a taxa de abandono dos tratamentos por parte dos doentes é preocupante. Os meios de diagnósticos (para além do teste rápido) são morosos e muito limitados (não é possível, por exemplo, determinar a carga viral). 

Apesar deste panorama tão pouco animador, devo contudo testemunhar o esforço que diariamente é feito por um pequeno grupo de técnicos, onde me incluo com o estatuto de voluntária (recepcionistas, conselheiros, activistas, enfermeiros, técnicos de Medicina, auxiliares de acção médica, técnicos de Farmácia, médicos) no tratamento e acompanhamento dos doentes. Registámos desde o início deste ano mais de mil doentes (uma média de 3 novos doentes por dia). A agravar esta situação muitos deles sofrem de tuberculose, muito frequentemente têm episódios de malária o que agrava muito o prognóstico. 

O contexto social é perpassado por muitos estereótipos, crendices, feitiços e magias, sintomas de fatalismo e cepticismo, discursos moralistas que complicam as intervenções dos técnicos e que determinam que os doentes recorram já muito tarde aos serviços de saúde prejudicando ou inviabilizando a sua recuperação. É muito frequente o aparecimento de pessoas doentes que fizeram uma jornada longa pela medicina tradicional (vulgo curandeiros), ficando exauridos não só nas condições de saúde física, mas também de recursos financeiros. Chegam trazidos ao colo pela família num estado adiantado de caquexia (magreza extrema), com grave deterioração das funções vitais, das quais acabam por falecer, uma vez que necessitariam de cuidados médicos e de enfermagem muito complexos que aqui neste contexto de escassez de recursos é impossível dispensar.

 Tendo em consideração os aspectos culturais deste povo, a doença não se explica pela falência ou distúrbio no funcionamento das células e órgãos, por defeitos metabólicos ou agressão de agentes externos e muitas outras causas. É sempre atribuída a forças mágicas ou feitiços que lhes foram lançados pela família, antepassados mortos, ou ainda pelos vizinhos, dos quais se tentam libertar através das práticas tradicionais dos curandeiros. Por estas razões, a atitude de negação da doença é muito frequente. Num estudo realizado por Cristiano Matsinhe (perito moçambicano de ciências sociais) e recentemente divulgado, podemos colher muitos contributos para o conhecimento desta complexidade social ligada a esta doença. Afirma ele que é necessário” mergulhar no repertório de valores, representações e significações que desafiam as acções de luta contra a Sida, problematizando-as, como estruturas dinâmicas que também sustentam as representações oficiais”. Quer ele, com isto significar, que muitos profissionais de saúde também se apropriam destes repertórios de crenças, coabitando com a medicina tradicional ou aconselhando mesmo o recurso àquelas entidades, para resolução dos problemas particularmente nos meios rurais.

Na minha prática, tenho verificado que, muitos doentes confessam ter já percorrido estes trajectos, e que não compreendem as alterações do seu estado de saúde. É necessário muito trabalho para explicar o que está a acontecer, a evolução e a responsabilidade individual no controle da doença. Este longo caminho exige muita persistência, muitas horas de conversa, de avanços e recuos, de períodos de melhoria e de agravamento. O analfabetismo e a pobreza são factores que como imaginam complicam todo este quadro, pois as terapêuticas são complexas e o grau de adesão é baixo. Alguns logo que se sentem ligeiramente melhores deixam de tomar os medicamentos e esta atitude acarreta problemas de gestão de alternativas terapêuticas, tendo em atenção que estas são muito limitadas. A discriminação acontece no seio das famílias e por isso, conheço alguns casos muito dramáticos sob o ponto de vista social e humano, ficando as mulheres e crianças em situação ainda mais precária.

 A propósito posso contar-vos a história da Vitória. Conheci-a na consulta, estando grávida do bebé que se chama Rolfo. Nessa altura estava muito desnutrida e tinha manifestações cutâneas agravadas com sarna infectada que atingiam a face, tronco, membros superiores e inferiores. Foi hospitalizada na Maternidade para tratamento desta situação, mas infelizmente nada melhorou. Permanecia quase todo o tempo na cama envolta nas suas capulanas bastante sujas sob a indiferença dos profissionais de saúde. Passados poucos dias foi-lhe dada alta e perdi-lhe o rasto. Apareceu na consulta poucos meses depois já com o seu filho nos braços. Vinha andrajosa, pés descalços, com um aspecto físico bastante deteriorado, mas a sua principal preocupação resultava do facto de não ter leite pois o filho chorava com fome. Era considerada uma doente rebelde, porque não cumpria as recomendações do pessoal de saúde e parecia não haver compaixão por esta situação social e humana muito desfavorecida. Felizmente a médica acedeu à minha proposta de a internar desta vez na enfermaria de Medicina para a podermos ajudar. Conseguimos apoio para comprar roupa e assim poder mudar diariamente após os cuidados de higiene e tratamento da sarna. Foi necessário adquirir roupa para vestir a criança, uma panela para ferver a água e biberões, leite, sabão, termo para guardar água fervida, antibióticos para o bebé que apresentava também feridas infectadas (convém esclarecer que não existem recursos na enfermaria para preparar um biberão). Com a colaboração dos colegas da enfermaria de Medicina foi possível tratar a sarna, mas a introdução do tratamento com os antiretrovirais foi fundamental para a melhoria do estado clínico. Adquiriu autoconfiança, recuperou um pouco da sua dignidade humana,  treinou a preparação do biberão e fez aquisição de conhecimento sobre o  auto-cuidado e higiene com a roupa do filho. Neste momento, não falta às consultas e cumpre satisfatoriamente os compromissos que assume comigo. Estabelecemos uma relação de confiança e respeito porque, felizmente, fala razoavelmente a língua portuguesa, o que me permitiu a compreensão das suas necessidades e conhecimento dos contornos da sua situação de mulher abandonada pelo último companheiro, pai do Rolfo. Desconhecemos ainda qual é a situação desta criança relativa ao vírus da SIDA, uma vez que não existe tecnologia para fazer a sua avaliação clínica. O que interessa, neste momento presente, é que a criança está a desenvolver-se dentro dos parâmetros normais para este contexto, e que o seu sorriso em cada vez que me visita é uma enorme alegria. São estas pequenas conquistas que nos dão ânimo para prosseguir com o nosso trabalho, como voluntária neste país Africano (um dos mais pobres do Mundo), onde estamos rodeadas de carências múltiplas e onde tomamos consciência da dimensão das várias faces da pobreza. Com base na experiência destes meses de trabalho e da consciencialização da multiplicidade de problemas destes grupos de pessoas vulneráveis (com particular atenção para as mulheres com crianças), adolescentes e idosos sem família, parece-me ser urgente criar uma estrutura de apoio a estas situações. É muito importante proporcionar-lhes a aquisição de conhecimentos básicos sobre higiene, confecção de refeições equilibradas e variadas com recurso aos produtos cultivados nas suas machambas, gestão dos medicamentos e consultas, controle das tomas na fase de indução dos tratamentos, visitas domiciliárias. Há muito trabalho para fazer. Os recursos são muito escassos. Mas, na minha modesta opinião, também urge formar equipas de técnicos com uma sensibilidade diferente para toda esta problemática do sofrimento que esta doença arrasta consigo. É ainda muito urgente realizar campanhas de informação e prevenção sobre este flagelo a começar nas crianças em idade escolar, nas escolas secundárias, nas universidades, nas pequenas comunidades. Para esta enorme tarefa todos os actores sociais devem ser convocados desde os régulos, curandeiros, autoridades administrativas e da educação, a Igreja, os políticos, os artistas ou seja todos os que possam concorrer para a mudança de comportamento deste povo tão resignado.

Eugénia Ferreira
(Enfermeira)

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