A HISTÓRIA DE UMA PAIXÃO - Parte IV

(Continuação...)

E havia ainda um outro trabalhador muito importante na Saúde. Ao portão do recinto onde ficava o centro de saúde estava sempre o segurança – o tio Vasco (nome fictício, agora apeteceu-me...) – e tenho de reconhecer que a Irmã Quitéria, que o tinha colocado naquele posto, só podia ser uma pessoa com uma criatividade e poder de observação notáveis. Posso pedir-vos para fazerem um exercício comigo? Têm à vossa disposição todas as pessoas da aldeia, pois não há praticamente emprego, mas não podem exigir qualificações, uma vez que poucos têm sequer a escolaridade mínima... Numa zona já desminada, sem grande violência no dia-a-dia, para além das ocasionais rixas de homens bem avinhados, qual o perfil que escolheriam para um segurança de um centro de saúde? Controlador? Intimidante? Correcto e incorruptível? Com capacidade para proteger os trabalhadores e os equipamentos? Bem, eu digo, a sua principal característica da personalidade era ser um coscuvilheiro de primeira apanha, daqueles mesmo do tipo não-há-nada-que-eu-não-saiba-ou-não-venha-a-saber! Aquele homem era um autêntico agente infiltrado! Perdoem-me o preconceito. Se calhar a potencial utilidade desta perturbação da personalidade foi imediatamente evocada por todos os estimados leitores, mas a mim não me tinha passado pela cabeça. E já agora perdoem-me também o abuso de linguagem, que este texto pretende-se assim mais para o científico do que para o comezinho e ser cusco não é, evidentemente, perturbação mental nenhuma...

Mas deixando-me de brincadeiras, o tio Vasco era absolutamente extraordinário: nunca mais voltei a ter alguém que me desse parte dos doentes que eu tinha visto depois de os ter mandado para casa ou de os ter enviado para outro hospital. Era melhor que uma equipa domiciliária de follow-up: sabia tudo sobre os doentes que tinham passado por ali – como estavam, como se estavam a dar com a medicação, se os meninos já tinham voltado à escola ou se os adultos já tinham voltado a trabalhar. Foi ele que um dia deu o alerta de que não tinha visto nesse dia uma senhora viúva que tinha estado no Centro de Saúde no dia anterior com uma gastroenterite aguda e pouco tempo depois foram a sua casa, onde a encontraram caída e muito desidratada. Como passava o dia ao portão, toda a gente tinha obrigatoriamente de falar com ele. Sempre que ficava preocupada com um doente, bastava lembrar-me do nome dele e perguntar por ele ao tio Vasco: 

– Tio Vasco, que é feito da D. Eugénia?
– Começou a tomar o antibiótico há dois dias e esta tarde saiu para a machamba. Já estava melhor.
– E como está o Professor Sebastião?
– Está com malária de três cruzes e não consegue sair de casa, mas a filha foi levar-lhe comida e diz que já tem apetite...

(Continua...)

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