Uma nova manhã em Iapala - parte III

À uma da tarde, quando já o sono começava a levantar, a Irmã Florinda veio arrancar-me da secretária para ir almoçar, sem admitir réplicas ou alegações de trabalho por fazer. Que fosse rápido que tínhamos visitas para o almoço: três padres que seguiam caminho vindos de Lichinga para o litoral. Um moçambicano, um mexicano e um brasileiro simpatiquíssimo que ficou sentado a meu lado na mesa do almoço e que ironicamente me pediu um anti-histamínico porque há já três dias que não conseguia dormir, acometido como estava de uma “cólera nasal”, como ele dizia, de tal forma intensa que já começava a temer desidratar pelo nariz (sic)! De bom grado lhe ofereci o que restava do culpado pela minha manhã sonolenta. 
A conversa do almoço correu célere sobre a refeição deliciosa preparada pelo cozinheiro, que para cozinhar com coco fresco tinha subido ao coqueiro vizinho do meu quarto (o mesmo que interpretava para mim todas as manhãs os sons da chuva). 

Falaram-nos também sobre as suas preocupações com as eleições presidenciais já próximas e os confrontos ocorridos recentemente em Inhaminga entre militantes da Renamo e da Frelimo.
O cozinheiro entra no fim do almoço e explica que tentou fazer café com o café de Iapala, mas “desconseguiu” pilar o café a tempo, por isso terá de fazer Nescafé®. “Está bem, não há problema”, respondemos. 

(Desconseguiu... lindo!... É mais um neologismo bem à africana. Isto de falar Português é difícil e a responsabilidade de falar uma língua conservadora, com palavras altivas e centenárias, é entregue a um povo quase todo ele analfabeto. “O povo que se desenrasque!”, dizem os dirigentes. E o povo desenrasca-se, ou vai-se desenrascando... À boa maneira moçambicana, com neologismos deliciosos em catadupa que, pé ante pé, já vão conquistando lugar nas novas edições dos dicionários...).

Depois de almoço levantamo-nos para ir mostrar aos visitantes as obras de restauro da igreja da missão, dedicada a São João Baptista e que foi quase completamente destruída durante a guerra civil, altura em que era utilizada como refúgio para a população que procurava o auxílio dos missionários. Durante os anos da guerra o hospital onde estou agora a trabalhar foi o único operacional num raio de mais de 200 km e a missão era o único porto de abrigo onde o povo podia recorrer para procurar comida, medicamentos, roupa… e conforto espiritual no meio da dor de tantas mortes e tantas perdas. As obras estavam bastante adiantadas, embora, segundo as Irmãs já pudessem mesmo estar terminadas, não tivesse sido um equívoco do pintor, que desgraçadamente atrasara mais de 20 dias as obras e quase duplicara o orçamento…Pois… inacreditavelmente, num dia em que o responsável pela obra estava fora, o pintor tinha rebocado inadvertidamente uma das paredes com a massa que utilizavam para regularizar as fissuras das paredes e tapar os buracos de balas. O reboco tinha ficado perfeito, isso todos tinham de reconhecer… o problema é que a dita massa absorvia a tinta como se fosse um polímero superabsorvente! Durante os dias seguintes, sem que conseguisse perceber porquê, o pintor tinha tentado pintar a parede do altar com demãos atrás de demãos e esgotado baldes de tinta branca atrás de baldes de tinta e a parede continuava impávida e bege, como se nunca tivesse recebido um único salpico… Inicialmente intrigado e depois aflito com o estranho fenómeno, só ousou avisar o responsável alguns dias depois, quando já era de todo impossível disfarçar o enorme rombo na provisão de tinta.
– Não é possível! O pintor está a roubar tinta para a casa dele! – disseram as Irmãs quando o responsável as foi alertar para o prodígio que se passava.
– Mas não é possível, eu estou sempre aqui com ele. A tinta desaparece toda nem meia hora depois de ser aplicada… – respondia o responsável.
– Irmã, tem feitiço nesta igreja! – gaguejava o pintor, mais assustado que todos os outros.
– Tem feitiço! – repetiam já os habitantes da Missão. – Foi por causa de todos os que foram massacrados durante a guerra dentro da igreja. Os espíritos dos antepassados ficaram entranhados na parede atrás do altar porque era onde as pessoas se escondiam durante os ataques.
– Não brinquem connosco! – respondiam as Irmãs.

O responsável já planeava chamar um feiticeiro para espantar os maus espíritos que habitavam a igreja – às escondidas das Irmãs, obviamente, que já estavam quase a perder a paciência – até que deu por falta da massa para cobrir as irregularidades das paredes e o feitiço se quebrou no mesmo instante. (Bem, ao menos não sou só eu que sou loira nesta terra…) Os padres riram a bandeiras despregadas quando ouviram a história da parede encantada. Bem dispostos, despediram-se pouco depois, agradecendo o almoço e a visita pois a tarde já ia adiantada e ainda tinham muita estrada em mau estado pela frente. 

Patrícia Lopes
(Médica)

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