Uma nova manhã em Iapala - parte II

Lepra?! Esta senhora tinha uma úlcera num pé, mas estava em fase adiantada de cicatrização. Não tinha deformidades visíveis, não tinha amputações de dedos, em suma, não tinha nada que saltasse à vista de um leigo (e como eu sou leiga!) que tinha lepra. Mas não se entrosava com as outras pessoas. Veio só e regressou só. Cobria a cabeça com um véu, não com a graça e vivacidade das mulheres Macuas, mas como uma autêntica burka... Terá sido excluída da sociedade, ou terá sido ela, com a consciência da doença, que se auto-excluiu? Mas se a lepra tem cura (e ela sabe que a lepra tem cura, senão não se estaria a tratar e a sujeitar-se às reacções adversas dos medicamentos) por que será que se comporta desta forma? De onde lhe virá a consciência da doença...? De onde virá o estigma, o peso que a faz vergar os olhos? Mas talvez no fundo eu perceba o que se passa. Acho que reconheci no olhar desta doente a opressão que via há bastantes anos atrás aos doente com SIDA, antes de os anti-retrovirais terem revolucionado (e, em parte, desdramatizado) a epidemia na Europa... Não se entende... Uma doença tão simples... Muito mais mortífera é a malária – o Rufino que o diga – e não faz este abalo na vida social! Mas... lepra?! Será possível? E mesmo por baixo do meu nariz! (Uma menina à minha frente capta a minha atenção... Sim, logo à noite hei-de estudar a doença, agora há que trabalhar...)

Fico rendida a estas crianças quando alguma me sorri. É tão raro não terem medo de mim... Que pensarão elas desta mucunha, como eles aqui chamam aos brancos? Uma mulher sem cor de pessoa que lhes avança a mão para a face e lhes descobre as pálpebras, num gesto mais ou menos aflito consoante a palidez que ostentam. “Nsina nawo mwana?” (Como se chama a criança?) E nestes dias já vi desfilar diante de mim, pintadas de preto e em ponto pequeno quase todas as personagens do Antigo Testamento, Ananias, Malaquias, Levítico, Judite, Ozias... Outras têm nomes próprios como Trinta, Malária, Quietinha, Castelo, Apressado, Médico, Fresquinha, que me fazem sorrir. Há certos nomes que nos entreabrem intimidades distantes e nos permitem, deliciosamente, penetrar em qualquer coisa de interdito nas fantasias e sonhos dos pais das crianças... Vai avançando o cortejo a passo de caracol. É difícil trabalhar com este sono espesso. [...]
Patrícia Lopes (Médica)

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