Há festa em Murralelo - parte II

[...]
No final do almoço somos chamados cá fora. O professor do menino, que nos abordara antes da missa diz-nos: 
– Sabem, Irmãs, o menino que mostrei há bocado... já despediu.
Não compreendo o que diz, entendo as palavras, não o sentido, mas a Irmã Lurdes parece ter tido um choque: – Como?!
– Já despediu, Irmãs, perdeu a vida...

Que horror! Meu Deus, como é que é possível?! Mas nem sequer parecia doente... De tal forma não fiquei preocupada com ele que já só vagamente me lembrava que tinha de perguntar pelo menino antes de ir... Olhamo-nos consternadas. A face triste do menino vem-me à memória com uma angústia brutal. Nem posso acreditar, meu Deus... Tão de repente... e logo uma criança… Ocorre-me então uma pequena luz de esperança: 
– E se estiver só desmaiado outra vez? Alguém lhe viu o pulso, viram se respirava? 
O professor acena negativamente. 
– Onde é que ele está? Vamos lá agora mesmo – decidiu a Irmã Lurdes. 
– Mas é longe, Irmãs, ele está em casa.
– Vamos embora!

Com o coração completamente aos pulos lá sigo o professor, atrás da Irmã Lurdes e do Padre Filomeno. Sinto-me inteiramente responsável por esta morte, nem quero acreditar... Avançamos hors piste, a corta mato. Não há sequer um caminho por onde possa passar uma bicicleta. Chegamos por fim à casa do menino, após uma caminhada que deve ter demorado uns bons 15 minutos. A família está reunida cá fora sob o alpendre da casa, fitando o menino com um ar consternado, como se estivessem a velar um caixão. O menino deitado no chão, com a cabeça apoiada sobre os joelhos de um jovem adulto está vivo! Consciente e orientado. Suspiro de alívio. Graças a Deus! Mas está a arder em febre. Deve ter tido uma crise convulsiva e depois entrado em coma durante alguns minutos e a família pensou que tinha morrido. Tem malária cerebral de certeza! Está prostradíssimo, suado e com a tonalidade acinzentada que só se vê nas doenças mais graves. Temos de o levar para o hospital o mais rápido possível, mas sabe Deus se lá conseguirá chegar vivo... Começo a observar o menino, que no mesmo instante começa a fazer movimentos periódicos com os olhos. Vai convulsar novamente. 
– Vamos deitá-lo, que é melhor.
Durante minutos intermináveis o menino é sacudido por movimentos dos quatro membros, ante o choro manso da família. 
– Temos de o levar para o hospital o mais rápido possível, senão morre de certeza!, digo à família, mas ninguém me parece ter compreendido. Peço ao Padre Filomeno para me traduzir para macua, mas também ele permanece calado, como se nem tivesse prestado atenção. O que será que se passa? Por que é que de repente ficou tudo em câmara lenta? Por que é que ninguém se move, ninguém fala, ninguém faz nada para salvar este menino?
– O que é que se passa, Irmã, não vamos?
– Espera um pouco, não te impacientes, o pai e a mãe estão a decidir se levam ou não o menino para o hospital. 

(Terei ouvido bem?) – A decidir se o levam ou não?! Mas não sabem que o menino vai morrer de certeza se não o levarem?

– Tem calma, esta cultura é muito especial, há valores que se sobrepõem a todos os outros. Se por acaso acontece o menino morrer longe daqui, a sua alma nunca mais vai encontrar o caminho de volta, nunca poderá ser feliz na outra vida e a família vai sentir-se responsável por isso.

O menino começa novamente a convulsar e ajoelho-me para o amparar enquanto a família se coloca de pé em redor, com uma face solene. 

– Estão a dizer que os antepassados já tomaram conta do menino, já estão no corpo dele. Para eles é como se já estivesse morto...
De facto, que outra interpretação é que uma cultura que nunca teve contacto com a ciência, poderia dar a uma convulsão? Se calhar foi por isso que disseram há pouco que ele tinha morrido, quando era óbvio que ainda estava vivo. Mas assim não vai haver maneira de convencer a família de que o menino ainda pode sobreviver... Mas a Irmã continua a falar calmamente com os pais, expondo os seus argumentos, ajudada pelo Padre Filomeno. Diz que podemos tratar a doença do menino e, se ele sobreviver, os antepassados não vão entrar no corpo dele. 

Eu estou completamente fora de mim, estamos a perder um tempo precioso, já podíamos estar a chegar ao carro e o menino está com convulsões quase de cinco em cinco minutos. Os pais, por fim, dão sinal de anuimento e a mãe desaparece dentro de casa, para colocar roupa, comida e uma panela dentro de um cesto para irem para o hospital. 
– Vamos?
– Ainda não, foram chamar o tio.
– Como?! Chamar o tio para quê, se os pais já concordaram? É preciso chamar a família toda?
– Fala mais baixo, que eles podem compreender-te! Entre os macuas quem tem direito e exerce o poder paternal sobre as crianças não é o pai, mas o irmão mais velho da mãe. O pai pode dar a sua opinião, mas quem tem efectivamente o poder de decisão é o tio, e isso é incontornável.

Mais uma convulsão. A situação é crítica, mas temos de tentar mantê-lo vivo até chegarmos ao hospital. Só então começo a raciocinar em termos médicos, vamos arrefecê-lo, dar-lhe paracetamol e cloroquina. Nada disto vai resolver o problema, mas pode ser que o ajude a não piorar. Outra causa tratável de convulsão é a hipoglicémia, que é muito frequente na malária maligna. Vamos dar-lhe água com açúcar.
A família olha-me, consternada:
– Não temos açúcar, Irmã.

Meu Deus, como é possível uma pobreza a este ponto? O que é que eu estou aqui a fazer, no meio de uma cultura que não conheço e não compreendo e ainda por cima com a fantasia de que consigo tratar alguém sem meios nenhuns... Procuro na carteira, esperançada de encontrar algum pacote esquecido de um café de Lisboa e, de facto, lá encontro alguns pacotes de açúcar, que coloco num copo de água que me trazem. [...]

Patrícia Lopes (Médica)

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