Um Dia Depois da Noite - parte I

É manhã novamente em Iapala. Arrefeceu muito durante a noite e, na cama morna, minutos antes da hora de levantar, o já meu conhecido linguajar pluvial dos coqueiros recria uma ilusão outonal, calma e reconfortante, de chuva branda num Sábado de manhã. Recompensa justa por uma noite sobressaltada. Uma chamada urgente do hospital a meio da noite por causa de um menino que chegou em crise convulsiva com malária cerebral, trazido pela família já em desespero. 

Apesar de o hospital ser mesmo em frente à casa das Irmãs, o medo que os africanos têm dos cães que guardam a Missão, que presumo motivado pela raiva que por aqui pulula, teria decididamente impedido que me fossem chamar durante a noite. Contudo, a Irmã Lurdes, Superiora da Missão, criou um sistema simplesmente hilariante para contornar o pânico que os africanos têm dos cães sem pôr em causa a nossa segurança: dois apitos de árbitro de futebol, adquiridos em Portugal, pendiam no Hospital pregados à parede, um na Maternidade e outro na Urgência Geral, prontos para qualquer eventualidade. E esta noite tinha sido acordada pelo silvo impaciente do apito expulsando--me da cama com cartão vermelho. Vesti-me rapidamente, um pouco às apalpadelas e saí para a rua de lanterna em punho, que apesar do luar é preciso ver bem onde se pisa, não fosse aparecer alguma cobra perdida no jardim... 

Já no hospital, em dois minutos, a história clínica ficou colhida e iniciou-se a terapêutica da malária cerebral. Diagnósticos definitivos só no fim, que nestes casos não há tempo para perder à espera de análises laboratoriais. Nem o laboratorista se encontrava no hospital àquela hora... Só então arranjámos um colchão para instalar o menino. Apesar de estarmos na estação seca, em que a taxa de hospitalização é mínima, as camas estão todas ocupadas e tivemos de o acomodar no corredor... Na estação das chuvas as condições são ainda mais precárias: o número de doentes hospitalizados é tal que têm de dormir no pwarrow, um abrigo amplo, com telhado mas sem parede completa até ao tecto, situado fora do edifício principal do hospital. Agora não há mais nada a fazer a não ser esperar que a medicação actue e rezar para que o menino reaja favoravelmente. Demorei-me um pouco a escrever no processo e só quando saí do gabinete me apercebi de que um homem ainda jovem chorava baixinho, ajoelhado à cabeceira do menino, que dormia sob o efeito da terapêutica. 

– O senhor é o pai?
– Não, sou tio.
(Não há maneira de interiorizar esta cultura, caramba!) 
Talvez compreenda Português, pensei.
– O menino não está em coma, está só a dormir por causa do medicamento que nós lhe demos para parar as convulsões.

Não deu sinais de me ter compreendido. Fui chamar o enfermeiro, que traduziu a minha explicação para Macua. O tio afinal tinha-me compreendido, mas não acreditava que o menino pudesse sobreviver, porque todas as pessoas que tinha visto com malária cerebral tinham sucumbido. Expliquei-lhe que ainda era muito cedo para saber o desenlace, mas que era muito possível que o menino resistisse. Parou de chorar. 
– Obrigado.

Nem  por um momento deixou de fitar o sobrinho...
Do outro lado do hospital ouvem-se gemidos de mulher e alguém que me chama pelo nome, mas não os consigo localizar, virão da maternidade? Atravesso o pátio tentando não acordar os familiares dos doentes internados, que dormem no chão do alpendre. Os gemidos vêm, de facto da sala de partos. À porta está o futuro pai da criança, acompanhado de outros familiares, andando de um lado para o outro, numa pilha de nervos. Nem me atrevi a perguntar-lhe se não quereria entrar para assistir ao parto. Algo me diz que nesta cultura o parto é um acontecimento interdito aos homens... Oiço a voz da parteira incitando mansamente a parturiente a fazer força. 

– Está tudo bem, D. Catarina?
– Entre, Doutora. [...continua]
Patrícia Lopes (Médica)
Voluntária da APARF

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