Irmã "Xupa"

Desde que comecei a acompanhar o PNCTL, no início de Fevereiro, já foram diagnosticados 24 novos casos de lepra neste distrito, fazendo um total de 27 casos novos no primeiro trimestre de 2007 (entre Janeiro e Março). Muitos são casos em que os doentes atrasam a sua ida às unidades sanitárias, desvalorizando as manchas suspeitas, preferindo ir primeiro ao curandeiro (aqui a medicina tradicional tem uma grande presença e força!)... Quando chegam às nossas mãos já têm, algumas vezes, zonas insensíveis e deformidades irreversíveis a nível das mãos e pés… e mesmo reacções lepróticas típicas com nódulos e sinais inflamatórios, aos quais se acrescenta à terapêutica anti-leprótica, um esquema de corticóides, cuja administração deve ter uma vigilância muito cuidadosa, devido aos efeitos secundários.

Gostaria ainda de acrescentar um aspecto que me foi possível vivenciar e observar nestas poucas semanas que ainda estou a trabalhar no PNCTL. Para que haja um bom trabalho da minha parte junto dos doentes, preciso que os doentes compareçam nas datas marcadas às concentrações. Para tal, necessito da ajuda do enfermeiro supervisor, enfermeiros e técnicos das unidades sanitárias e dos voluntários. Estes voluntários têm um papel-chave: são as pessoas, que sem receberem incentivo económico, sinalizam, mobilizam e incentivam os doentes para comparecerem nos dias de concentração de lepra. Todos os dias, dou conta que sem eles o meu trabalho não funciona. Não cabe só aos enfermeiros e técnicos de saúde incentivar e cativar os doentes para frequentarem as concentrações mas também aos voluntários que os conhecem e vivem na mesma comunidade que os doentes.

Assim considero ser importante uma boa relação com este grupo. Tento motivá-los a ajudar os doentes de lepra, incentivando-os com palavras mas também com alguma ajuda material como seja sabão, calendários, camisolas,… mas julgo que não é o suficiente e à semelhança de outros voluntários da APARF, estou a programar uma reunião com a oferta de um almoço de convívio para pedir a sua colaboração e incentivo junto dos doentes de lepra.

O nome pelo qual somos chamados ao longo da nossa vida diz muito acerca de cada pessoa. Cada nome tem a sua raiz, origem, significado, valor,… indica a nossa  posição social / familiar / religiosa / política / laboral… distingue-nos de entre os demais na sociedade. Nestas terras descobri outros nomes, nomes pelos quais me apelidam ao longo do dia e conforme a ocasião, cada nome que me chamam tem o seu sentido e significado.

Começo por me chamar Vanda ao acordar e enquanto partilho o “matabicho” (o pequeno-almoço daqui) com as Irmãs da Apresentação de Maria onde vivo em Nampula, Moçambique.

À saída do portão, encontro os meus amigos e amigas pequeninos que começam a chegar para o início das actividades na escolinha que as Irmãs têm e que apoia cerca de 190 crianças entre os 3 e os 5 anos de idade. Mudo de nome e chamam-me logo Irmã, mesmo sem o ser…

Sigo para mais um dia de visita às concentrações de doentes de lepra e à chegada recebo o nome de Doutora. Lá vou dizendo que sou enfermeira e que me chamo Vanda. Os que já me conhecem de mais vezes tratam-me por Senhora Enfermeira ou Dona Vanda o que não deixa de ser engraçado. Para alguns já sou Mana Vanda, para os que se metem à conversa comigo, com quem partilho o dia a dia do quotidiano, com quem rio e partilho as “minhas preocupações” e com quem treino o meu macua!

Depois quando vou fazer algumas compras aos mercadinhos, tirar umas fotocópias ou simplesmente encher o depósito do carro sou outra vez Irmã, pois para o povo uma mulher branca sozinha, às compras, nas lojas ou ao volante de um carro, a trabalhar em Moçambique só pode ser religiosa pois senão o que é que anda aqui a fazer!?

Mas o que mais alegria e gozo me dá, acontece quando chego ao meu bairro em Nampula no fim do dia de trabalho e recebo o chamamento das crianças que vivem nas palhotas junto ao muro que rodeia a casa das Irmãs. Então passo a ser apelidada de Irmã “Xupa”. O carro é rodeado por várias crianças como sendo o Flávio, o Amisse, a Dairinha, a Lucinda, a Alice, a Paula, a Amélia de Sousa, o Ildon, o Aconteceu, … e outras que todos os dias aparecem quando chego e começo a buzinar para a sua alegria e contentamento. Já lhes disse que não sou Irmã mas para eles que ainda por cima são crianças, se vivo com as Irmãs também sou uma delas… e ponto final na conversa! Comecei a ser chamada assim já adivinharão porquê…pois um dia distribuí chupas e rebuçados e os pequenos desde aí que os pedem todos os dias… mas para que não se criem hábitos que não possam ser cumpridos no futuro, só distribuo de vez em quando e agora no dia da criança terão outra vez chupas e em dose reforçada! O mais engraçado é que quando chega um carro e que também tem o símbolo da APARF colado, quem lá vem dentro é também apelidado de Irmã Xupa, para confusão e risos dos demais!

Para estes pequenos, a vida é tão simples como brincar na terra, fazer brinquedos com restos de lixo, tomar banho numa bacia na rua onde quem passa pode ver, andar despido, sempre a sorrir e a cantar que me fazem pensar nas diferenças entre estes pequenos e as crianças de Portugal e dos outros países ditos desenvolvidos. Acho que a diferença não é nenhuma: todas adoram brincar em todos os sítios e com tudo, adoram tomar banho, adoram tirar a roupa, adoram sorrir e principalmente… adoram chupas!

Mpakha nihiku nikina (Até qualquer dia)
Enfermeira Vanda Barnabé
(Voluntária da APARF)

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