Iapala depois de jantar

Depois do jantar na Missão, como habitualmente, vou de novo ao Hospital ver como estão os doentes cujo estado mais me preocupa, apesar do protesto das Irmãs de que devo descansar e que estou cada vez mais parecida com a Irmã Sarala, a Irmã enfermeira que agora se encontra de férias na sua terra natal, na Índia. Ao que me têm dito, parece que, mesmo sem a conhecer, entretanto absorvi um pouco da sua maneira de trabalhar e de lidar com os doentes, o que penso que se deve, em parte, ao modo como eles próprios lidam comigo e às expectativas que noto que têm em mim.

Ontem, por exemplo, pediram-me para fazer o penso de uma cesariana a uma jovem mamã. Tudo bem. A ferida cirúrgica estava com óptimo aspecto e em fase adiantada de cicatrização, pelo que apenas a desinfectei, e já estava a colocar algumas compressas esterilizadas sobre a ferida quando notei que havia um silêncio estranho à minha volta... Olhando em redor, todos estavam com os olhos postos em mim num olhar que não consegui perceber se era de espanto ou de reprovação. O que seria que se passava? Fitei a técnica de Saúde Materna num olhar não menos interrogativo... "O que se passa, D. Aida?" "Então, Doutora, não põe nada?" "Mas... na ferida?! Pôr o quê?" "A pomada da Irmã Sarala." A pomada da Irmã Sarala! De facto, já tinha ouvido várias vezes elogiar o poder cicatrizante da pomada fabricada artesanalmente pela Irmã com base em plantas medicinais e não me custava nada acreditar na sua eficácia, uma vez que várias pomadas cicatrizantes que se vendem na Europa são também elas próprias produzidas à base de extractos vegetais. Assim, vi-me absolutamente forçada a aplicar a dita pomada, rezando a todos os meus santinhos para que tivesse sido feita em condições de assepsia e a ferida não se infectasse... Mais tarde pude constatar em vários doentes as suas notáveis propriedades regenerativas, ficando, portanto, esclarecido e inteiramente justificado o silêncio interrogativo na minha primeira tentativa de fazer um penso. É admirável a articulação entre a Medicina Tradicional e a Medicina Científica que a Irmã Sarala, com o curso tirado na Índia e a especialização na Alemanha, domina magistralmente e são estas coisas que me fazem sentir pequenina perante um tipo de conhecimentos que provavelmente nunca vou poder adquirir ou aplicar...

Na rua, esta noite, um nevoeiro andante invade todos os espaços numa incontinência cinzenta e fria, cobrindo as montanhas de um véu glaucomatoso. A lanterna continua a ser a minha melhor aliada na cerração da lua nova e da névoa para escrutinar o piso térreo tentando não pisar nenhuma cobra. Aqui de nada vale a valentia dos que afirmam não ter medo de ofídios: ingenuidade! não dispomos de antídoto para mordeduras venenosas e nem quero imaginar como é que faria a mim própria o desbridamento de uma ferida sem qualquer anestesia... Há dias, quando estávamos completamente sem energia, por lapso esqueci-me da lanterna e com o vento não podia sair do Hospital com a vela acesa. Não passava muito das 20:00, mas como estava completamente escuro já todos no Hospital estavam deitados, e foi à pálida luz do meu oftalmoscópio que consegui não tropeçar nos doentes e nas famílias que dormiam no chão cá fora, um pouco por todo o lado, isto apesar de haver camas vagas... Vários colegas me tinham perguntado a que propósito levava eu o oftalmoscópio para Moçambique, se não poderia tratar quase nenhuma das patologias que podia diagnosticar com ele. Mal eu sabia da sua futura utilidade...

À porta do Hospital está um homem com uma criança que aparenta uns oito ou nove anos, pai e filho sentados no chão, com o menino reclinado sobre o tronco do pai, entre as suas pernas abertas - cuidado habitualmente dedicado aos doentes e sinal inequívoco da sua preocupação pelo filho. Ao lado uma bicicleta e um cesto com roupa e comida. Nestes dias já aprendi a descortinar estes pequenos sinais: Vêm de longe... Assim, a esta hora, para além dos cuidados médicos, é necessário providenciar-lhes também o jantar e uma cama para dormirem. Abaixo-me para os cumprimentar, tal como aprendi com a Irmã Lurdes, sinal de boa educação nesta cultura - cumprimentá-los de pé teria sido provavelmente interpretado como rudeza ou arrogância da minha parte - e só então os convido para entrar. O menino parece ter-me compreendido e põe--se de pé rapidamente, encarando-me de frente com um olhar vivo e intenso, algo extremamente raro que me surpreende, já que as crianças habitualmente desviam o olhar envergonhado quando as observo. Desta vez, então, fiquei cativada à primeira vista! É um menino adorável. Para além disso, posso apreciar que tem bom estado geral, uma aparência razoavelmente cuidada para os padrões daqui, sobretudo considerando que deve estar em viagem há algum tempo e não parece de todo estar doente... 

Ao que me dizem, estão de viagem, sempre de bicicleta, há mais de dois dias e no mapa improvisado desenhado pelas Irmãs consigo encontrar o nome da aldeia de onde vêm: fica a cerca de 100 km daqui e não há sequer estradas nessa direcção por onde possa passar um jeep! Ao longo da conversa o menino continua a surpreender-me com uma inteligência e vivacidade invulgares e um domínio da língua portuguesa nada comum para uma criança que viveu toda a vida numa aldeia extremamente isolada. O motivo da consulta, pelo que consegui perceber, é uma dor intensa na perna, embora objectivamente não consiga descortinar qualquer lesão ou alteração neuro-muscular. Nos meus primeiros dias em Iapala costumava surpreender-me com o cuidado extremo que os pais dedicam aos filhos, o que era flagrantemente resultado de uma deformação profissional: as famílias numerosas, de sete ou mais filhos que vivem abaixo do limiar de pobreza, e que aqui são a maioria, em Portugal são geralmente famílias disfuncionais e as crianças demasiadas vezes vítimas de maus tratos e negligência. Mas claro que rapidamente formei auto-crítica e percebi que Portugal e Moçambique são duas realidades de forma nenhuma directamente comparáveis. Mas mesmo assim, há qualquer coisa aqui que não bate certo... Uma dor que não impede a marcha nem as actividades normais parece-me muito pouco para o esforço de uma viagem tão grande e arriscada. 

O pai tem bastante mais dificuldade no domínio da língua e parece ansioso, tentando explicar-me qualquer coisa de preocupante no estado de saúde do filho, mas que não compreendo. Já virei o miúdo dos pés à cabeça e a única coisa que consegui objectivar é que se encontra sub-febril e um pouco inquieto, a roçar o agitado. Mas mais provavelmente se trata de malária do que qualquer outra coisa mais grave. Não entendo... Só se estão de viagem para qualquer sítio e passaram por aqui para poderem dormir abrigados e tomar uma refeição quente. É uma hipótese que me parece muito mais plausível. De qualquer forma, geralmente sobra um pouco de comida e temos duas camas vagas no quarto do isolamento que se podem perfeitamente ocupar por uma noite. E quem é que os poderá censurar? Mais vale que durmam aqui do que ao relento no mato, onde há tantos perigos e não comer depois de uma viagem tão extenuante deve ser horrível. 

Em poucas linhas a nota de entrada fica feita: amanhã se fará o teste para ver se o menino de facto tem malária e vou falar com um auxiliar para lhes providenciar a acomodação. Agora a dúvida: perante uma suspeita tão ténue de malária não complicada devo tratar já ou não? Decido-me a não tratar sem fazer o teste primeiro. Vou--lhe dar apenas um paracetamol para lhe aliviar a dor na perna e baixar a temperatura... Regresso então com o comprimido e um copo de água mas, quando o entrego ao menino, este dá um grito apavorado... Gelei.  

O olhar do pai diz-me finalmente que era isto que estava há pouco a tentar comunicar-me: o filho tem pavor da água há alguns dias e não consegue engolir... Da porta a Irmã Lurdes, que tinha acabado de chegar para me obrigar a ir descansar, ainda assistira à cena e olha-me consternada. Também ela acabou de compreender que o menino tem raiva e sendo assim não há qualquer hipótese de cura... Está tudo finalmente explicado, a dor na perna, a ansiedade do pai, a viagem extenuante numa tentativa desesperada de salvar este filho tão especial, o brilho quase selvagem no olhar do menino, a agitação, a febre... "O menino foi mordido por um cão?" O pai nega, ansiosamente... Para além de não conseguir engolir, também está agitado e às vezes agressivo, diz. Examinando melhor o local para onde o menino aponta, realmente compreendo que não pode ter sido um cão a fazer uma cicatriz de mordedura tão pequena. "Que bicho lhe mordeu?", pergunto, compreendendo subitamente a verdadeira origem desta expressão popular. O pai responde que nenhum, nenhum bicho, é isso que o intriga - pela conversa, agora com a Irmã Lurdes a traduzir, percebo que ele conhece os sintomas da raiva e tem essa suspeita no filho. Teve uma pequena ferida há algum tempo na perna, mas nem sequer ligou importância. "Costuma dormir ao relento?", pergunto. Um ligeiro aceno de anuimento. Só pode ter sido um morcego... Nem posso acreditar... E pensar que, se não fosse este pequeno incidente com o copo de água, o diagnóstico desta doença terrível haveria de se me escapar por entre as unhas! 

O que será que o pai espera de nós? Será que não sabe que a raiva nesta fase já não tem cura e tem esperança de que façamos algo, ou pretende só a confirmação do diagnóstico? Mas mais vale esperar pela manhã para ter essa conversa tão delicada. Pai e filho devem estar exaustos... A Irmã Lurdes, já habituada aos muitos casos de raiva que aparecem por ano, desfaz o comprimido, coloca-o numa colher e senta-se ao lado do menino: "Se eu te tapar os olhos, achas que consegues tomar o remédio para passar a dor? Vais sentir-te melhor..." Com os olhos vendados para não ver a água que o apavora e lhe provoca espasmos intensos na garganta, a muito custo, consegue engolir o comprimido desfeito e algumas colheres de água...

Não consegui dormir quase nada esta noite. Nem eu nem as Irmãs. Não nos podemos oferecer para cuidar do menino no hospital porque o prognóstico é fatal a breve trecho e na cultura Macua os mortos não podem ser enterrados longe do local onde nasceram, sob pena de a alma nunca mais encontrar o caminho para o céu. E não havendo estradas para aquela zona também não podemos ir levar o menino a casa... Mas de manhã o pai é categórico: quer ser ele próprio a cuidar do filho, e levá-lo para casa o mais rápido possível para lhe poder dar algum carinho e descanso no final da vida e levá-lo a despedir-se dos seus... Mas aceitou de bom grado os analgésicos e sedativos e o transporte de jeep até onde a estrada termina. Emocionou-me a aceitação e a compostura daquele pai de família, mantendo o pragmatismo e o cuidado com o filho, em circunstâncias tão terríveis e tão revoltantes.

Quanto a nós, há que persistir, embora o trabalho nos custe a pegar... 

Dra. Patrícia Lopes

Comentários