Voluntários da APARF em Moçambique Parte III

PROBLEMAS DE SAÚDE DA POPULAÇÃO 

Segundo a percepção dos enfermeiros do CS, as doenças mais prevalentes nesta área são a malária, as parasitoses intestinais, diarreias de várias etiologias, doenças de transmissão sexual, incluindo a infecção pelo VIH, a tuberculose nos adultos e, nas crianças, as pneumonias, anemias e desnutrição. Os principais motivos de transferência urgente de doentes para o HCN são a dificuldade respiratória, anemia grave e malária complicada.

Existe um problema sério de falta de formação dos funcionários do CS, quer a nível humano, quer a nível científico, bem como uma grande desmotivação, que se prende por um lado, pela falta de recursos e condições de trabalho e, por outro, pelos salários extremamente reduzidos, situação que se repete sistematicamente um pouco por todo o país. Esta situação levanta várias questões complexas: por um lado, existem localmente, de facto, muitas plantas e outros produtos orgânicos ou inorgânicos com propriedades medicinais e os médicos tradicionais têm também frequentemente conhecimentos sobre medidas gerais de tratamento de doenças e fazem o aconselhamento de hábitos de vida saudáveis. No entanto não têm uma aprendizagem formal, desconhecendo conceitos básicos sobre os mecanismos de doença, o seu exercício não é regulamentado, não há geralmente possibilidade de controlo da dose terapêutica administrada, o que condiciona muitos óbitos por envenenamento por substâncias tóxicas, as vias de administração são muitas vezes inadequadas (por exemplo, é extremamente habitual a administração de preparados tradicionais através da incisão da pele com objectos cortantes não esterilizados, com todos os riscos inerentes a estas práticas) e habitualmente cobram honorários muito superiores às taxas moderadoras cobradas pelas unidades sanitárias. Por outro lado, embora as duas formas de Medicina não sejam totalmente antagónicas ou mutuamente exclusivas, a falta de cooperação entre os médicos tradicionais e os profissionais de saúde leva a que os doentes não sejam referenciados ou, pelo menos, encorajados a recorrer a uma unidade sanitária quando a situação clínica assim o impõe. Uma outra questão a ser considerada na Medicina tradicional é o aspecto espiritual e cultural. O povo macua tem uma cultura muito rica em crenças, rituais, cerimónias e a doença é encarada como um fenómeno biológico, social e psicológico complexo. Embora isto seja considerado por muitos peritos em Medicina como difícil de entender e explicar, não é possível fazer qualquer progresso na compreensão da questão sem abordar os aspectos espirituais da Medicina tradicional, visto que toda a cultura macua e o seu sistema de crenças se baseia na convicção do poder dos espíritos ancestrais e em poderes sobrenaturais. Sob este prisma, a Medicina tradicional, englobando rituais e cerimónias, está mais adaptada à cultura local e permite mais facilmente aos doentes atribuir um sentido inteligível à doença do que a Medicina científica, gozando de maior confiança por parte da população, que acredita no poder do mukulukhana para invocar a intervenção dos antepassados.

VIH/SIDA

No que se refere à infecção pelo VIH/SIDA nas mulheres grávidas e crianças, este constitui um problema de particular relevância, uma vez que uma intervenção atempada pode prevenir a transmissão vertical (da mãe para o filho) da infecção, aumentando a esperança de vida da criança e melhorando definitivamente a sua qualidade de vida. Por outro lado, a gravidez constitui uma oportunidade privilegiada de intervenção a nível de aconselhamento, dado que é um período em que a mulher se encontra mais receptiva à aprendizagem de aspectos relacionados com a sua própria saúde e a do seu filho, sendo também maior a probabilidade de aceitar a realização do teste, sobretudo se lhe for oferecida a oportunidade de realizar uma terapêutica para reduzir a transmissão vertical. Nos países europeus e nos EUA, a prevenção da transmissão vertical (PTV) pressupõe a realização de terapêutica antiretroviral (PTV), bem como cesariana electiva:, terapêutica endovenosa durante o parto e aleitamento artificial exclusivo, caso em que se consegue uma redução da transmissão na ordem dos 100%. No entanto, em Moçambique estas medidas seriam absolutamente impraticáveis na generalidade das unidades sanitárias e pouco exequíveis nos maiores e mais bem equipados hospitais, sobretudo se considerarmos que a quantia per capita atribuída pelo Ministério da Saúde é de apenas poucos dólares por ano. Assim, qualquer intervenção a este nível, para poder ser assumida e apoiada pelo estado deverá ser relativamente eficaz, de baixo custo e necessitar de poucos recursos humanos e materiais. Existem muitos estudos recentes que demonstram que uma dose única de um fármaco anti-retroviral (nevirapina) administrada por via oral à mãe durante o parto, assim como uma dose do mesmo fármaco administrada à criança logo após o nascimento reduz em 50% a transmissão vertical, com um custo total de cerca de 0,50 € (calculado a partir do custo do medicamento genérico na Medimoc). Dada a elevada taxa de natalidade do país (mais de metade da população de Moçambique tem menos de 18 anos de idade), trata-se de uma intervenção extremamente urgente e que deve ter prioridade relativamente à TARV dos adultos, uma vez que permite reduzir o aumento da prevalência da infecção por VIR, bem como a mortalidade infantil. É também a intervenção com melhor relação custo-benefício, pode ser integrada nas consultas de SMI já praticadas nos CS, sem quaisquer meios adicionais, não requerendo outro espaço físico ou um aumento de pessoal do quadro. Necessita, no entanto, da existência de um espaço físico com privacidade para a realização do aconselhamento, de formação específica do pessoal em aconselhamento e noções básicas de PTV durante a gravidez, parto e amamentação, da existência de um laboratório na unidade sanitária e de reagentes para a realização do teste diagnóstico.

O CS da Namaíta tem um movimento de cerca de 300 a 600 consultas de Serviço Materno Infantil (SMI) por mês, entre consultas pré-natais e de puerpério, realizadas por uma enfermeira de SMI e quatro parteiras. O número de partos mensais é habitualmente entre 60 a 80.

Possui uma sala de partos com uma marquesa ginecológica e duas balanças para recém-nascidos (RN), embora não disponha de equipamento de reanimação de RN ou de equipamento para cuidados intermédios, como incubadora. Segundo informação da Directora do CS, o número de partos é extremamente reduzido em comparação com a taxa de natalidade da área de influência do CS. De facto, a impossibilidade de as grávidas no [mal da gestação se deslocarem até ao CS para a realização do parto, leva-as a dar à luz no domicílio, onde não recebem assistência adequada nem têm possibilidade de ser transferidas para um hospital de referência caso sUIjam complicações. Uma solução que comprovadamente já demonstrou a sua eficácia em outras unidades sanitárias do país seria a existência de uma Casa de Mães à Espera, onde pudessem aguardar com segurança o desencadeamento do parto. O período de espera é igualmente um momento privilegiado para as mães receberem informação qualificada sobre como cuidar do RN, cuidados a ter na amamentação e alimentação da criança para reduzir a probabilidade de transmissão do VIR e evitar o surgimento de outras doenças, anticoncepção no pós-parto, etc.

LEPRA

Uma das implicações das condições higieno-sanitárias da população descritas acima é que o bacilo da Lepra, uma vez que possui a capacidade de permanecer viável durante vários anos na terra, tende a perpetuar-se, mesmo na população que já recebeu tratamento, dando-se a inoculação por via transcutânea, já que o contacto prolongado das pessoas com a terra favorece a inoculação por esta via. No que se refere especificamente à prevalência da Lepra, segundo a informação publicada pelo Jornal Nacional Savana, de 3 de Fevereiro de 2006, o distrito de Nampula-Rapale é o terceiro mais afectado pela Lepra a nível nacional, com 13 doentes por cada 10.000 habitantes, juntamente com o distrito de Mogovolas. Em primeiro e em segundo lugar estão os distritos de Mogincual e Murrupula, com uma prevalência de 15 e 14,1 por 10.000 habitantes, respectivamente. Em Dezembro de 2005 encontravam-se 206 doentes de lepra em tratamento no distrito de Nampula-Rapale - 151 doentes com lepra multibacilar (MB) e 55 com lepra paucibacilar (PB), dos quais 121 doentes na área da Namaíta. Para além dos doentes em tratamento, existe ainda um número não quantificado, mas extremamente significativo de pessoas com deformidades, úlceras e outras sequelas físicas, psicológicas e sociais da lepra, uma vez que se trata, por um lado, de uma área com elevada prevalência de lepra e, por outro, pelo facto de na Namaíta ter existido uma leprosaria que foi desactivada durante a guerra civil que se seguiu à Independência, tendo a maioria dos doentes que tinham sido afastados da família permanecido nesta zona. Todos estes doentes poderiam beneficiar de um programa de reabilitação sócio-económica adequado à sua situação.

Relativamente ao tratamento, todas as unidades sanitárias da área da Namaíta recebem os fármacos preconizados pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para a terapêutica, disponibilizados gratuitamente aos doentes, com poucas rupturas de stoc~ existindo, no entanto, dificuldades pontuais na disponibilidade de prednisolona (Prednipac®) para o tratamento das reacções da lepra. O responsável na área da Namaíta pelo Programa Nacional de Controlo da Tuberculose e Lepra (PNCTL) é um enfermeiro básico/assistente técnico de saúde e colaboram no programa catorze voluntários seleccionados pelo Supervisor Distrital do PNCTL e formados pelo próprio e pela Direcção Provincial de Saúde. Os voluntários exercem a sua intervenção na área da Lepra, fazendo palestras em escolas, igrejas, mercados, acompanhando os casos suspeitos de Lepra ao CS, sensibilizando a população, veiculando informação sobre a doença, o tratamento e as datas das concentrações de doentes. Têm também a responsabilidade de assegurar a adesão dos doentes à terapêutica, procurando-os no domicílio quando não se apresentam na data marcada para receber a terapêutica. Dispõem de viaturas próprias (bicicletas). São realizadas periodicamente concentrações de doentes, dinamizadas pelos voluntários em dezasseis pontos da área da Namaíta, incluindo os Postos de Saúde já referidos ou, na sua ausência, sob um telheiro de capim, que serve como ponto de referência e local de maior privacidade para a observação dos doentes.

De uma forma genérica, pode afirmar-se que os principais problemas ao nível do diagnóstico e tratamento dos casos activos são:

- Ausência de realização de actividades de sensibilização e despiste nas escolas (embora esteja previsto o seu início a curto prazo, com um sistema de incentivo para a escola e para os alunos mais dinâmicos, à semelhança dos incentivos dados pelos voluntários da APARF aos doentes em tratamento);
- Dificuldades na comunicação à distância com os voluntários para confirmação das datas das concentrações e suas eventuais alterações (uma forma encontrada por Paulo Bica, voluntário da APARF, presentemente a trabalhar na Missão de Murrupula, para resolver este problema foi o anúncio público na rádio das datas das concentrações à hora de um programa de grande audiência);
- Falta de preparação dos activistas e profissionais de saúde para reconhecer e tratar as complicações da doença, bem como para o ensino do auto-cuidado;
- Negligência no seguimento e reavaliação dos doentes;
- Deficiências no registo da história clínica, complicações e terapêutica;
- Falta de adesão regular à terapêutica por parte dos doentes;
- Desvio de medicamentos ou a sua venda;
- Não referenciação às unidades sanitárias em caso de dúvida diagnóstica ou no surgimento de complicações.

Relativamente aos casos já tratados mas que permanecem com sequelas físicas, psicológicas ou sociais, porém, há uma grande lacuna ao nível da reabilitação física e sócio-económica.

Neste sentido, a voluntária da APARF, Anabela Alves, enfermeira licenciada, iniciou recentemente em colaboração com voluntários, uma actividade de cuidados continuados domiciliários junto das pessoas afectadas pela Lepra, promovendo o ensino do auto-cuidado e a sua reabilitação física. No entanto, a reabilitação sócio-económica e psicológica é uma questão que permanece por abordar.

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