Terra onde o sol se cruza com a lua e o tempo parece parar

Caros Amigos,

Durante os dois anos que estive em Moçambique muitas coisas aconteceram. Fui pela Associação Portuguesa Amigos de Raoul Follereau para cuidar dos doentes de lepra na zona de Ocua e acabei por viver muito mais do que alguma vez pensaria.

Fiquei hospedada na casa das Missionárias da Boa Nova na Aldeia de Mahipa, junto a um povo deveras impressionante. Jamais tinha conhecido gente tão pobre e tão rica ao mesmo tempo. Gente que acolhe como ninguém, que oferece tudo o que tem, mesmo que este seja pouquíssimo.

Um povo cheio de tradições e crenças como qualquer povo mas com uma alegria e calma inesgotáveis. Ali mesmo, junto a nós poderia sentir-se a tranquilidade de quem trabalha cantando, de quem acorda olhando a beleza do céu infinito, de quem sorri e se cumprimenta com um “Salama” vindo do mais profundo e sincero sentimento.

Quando cheguei a Ocua existia apenas uma pequena sala num edifício bastante degradado, que servia como posto de saúde, para o qual grande parte do povo faz quilómetros para obter alguma atenção e medicamentos para os mais variados males, desde a malária, diarreias, vermes, conjuntivite, desnutrição e inclusive a própria lepra.

Conhecendo um pouco a situação das mamãs que dão à luz em condições miseráveis sem qualquer cuidado de higiene porque a sua extrema pobreza material não o permite, e a falta de assistência hospitalar, senti que tal situação poderia vir a ser melhorada com a ajuda de amigos.

Ao ver tamanha necessidade e vontade de fazer algo mais para quem nos chegava a pedir auxílio enviei à Associação o pedido de financiamento de um novo e verdadeiro posto de saúde. Este foi aprovado e totalmente financiado pela APARF. Hoje neste posto trabalham duas pessoas com total competência e formação para atender os mais necessitados. Gostaria de fazer referência ao Benjamim, enfermeiro, um excelente profissional e à Matilde, parteira, que se encontra sempre disponível para atender as mamãs com grande atenção e cuidado.

Este posto de saúde é composto por quatro salas; uma para consultas, uma para pensos, outra para injecções e algum eventual internamento e uma Quarta sala para partos, tendo ainda suas casas de banho para cuidar de toda a higiene. Para que este projecto fosse possível realizar devo agradecer à Direcção, a todos os colaboradores e amigos da Associação que puderam tornar possível tal construção e deixar uma pequena semente a quem nada tem.

Gostaria no entanto de partilhar com vocês, neste novo ano que iniciou, uma pequena passagem da minha vida passada na terra onde o sol se cruza com a lua e o tempo parece parar.

Uma dia, numa das minhas visitas aos doentes de lepra, a uma das comunidades mais longínquas, recebi um presente precioso! Ao chegar tinha alguns responsáveis da zona à minha espera e alguns doentes que me aguardavam para receber o medicamento e algumas barras de sabão. Iniciei imediatamente as “consultas”. Ao mesmo tempo que ia atendendo as pessoas, cada uma com o seu tempo, sem qualquer pressa ou correria, íamos criando laços de amizade e carinho. Era sempre assim, uma palavra amiga por vezes vale mais do que qualquer caixa de medicamentos e eu estava lá para isso mesmo. Para eles!

No final das consultas já o dia ia longo. Comecei a arrumar as coisas quando me apercebi de uma senhora que se aproximava de mim. Sentou-se na esteira e sorriu. Pensei que fosse uma doente e perguntei pelo nome, ao que respondeu, Ana Muerayene. Comecei imediatamente a procurar nos meus registos pelo seu nome. Ela olhou-me e aguardou pacientemente que eu acabasse a minha tarefa. No final, nada encontrei. Pedi um tradutor para que pudesse entender melhor o que a Ana me queria, perguntei se ela estava doente, ao que me respondeu, não. Perguntei então a mim mesma o que quereria aquela senhora que me olhava fixamente. Voltei a perguntar qual o motivo dela estar ali. Vim visitar, respondeu. Apenas visitar! Senti-me ridícula com tantas perguntas e imediatamente pousei toda a papelada que sempre me acompanhava, deixei o que estava a fazer e sentei-me junto dela. Mais uma vez sorriu! Disse-lhe com o pouco macua que aprendi que não sabia falar macua. Ela soltou uma gargalhada e respondeu que também não sabia português! Depois de longas risadas demos as mãos e assim deixámos o tempo passar.

Deixo-vos este pensamento: quando é que nós deixamos, no percurso da nossa vida, de correr, apenas para estar com outro? Apenas estar...

A aldeia de Mahipa é assim, rodeada de imponentes embondeiros, mangueiras e cajueiros, iluminada de dia por um sol cor de fogo e à noite pelas pequenas estrelas colocadas delicadamente sobre um manto de veludo.

É no sentir do bater de cada batuque que se vive intensamente o pulsar de cada dia sobre a terra coberta de vermelho por onde passam, a pequenos passos, os pés descalços de quem faz quilómetros para sentir o bem mais precioso, a água. Água que percorre nos rios de um país, como veias que fazem viver este povo que sonha e que vive do mais puro da terra. Gente que fala com o olhar, gente que sabe sorrir, gente que ama.

Para trás ficaram os sons, as cores e os aromas de uma terra onde o cristão, o muçulmano, o feiticeiro e o adivinho comem à mesma mesa. Onde se sente o verdadeiro sentido da paz. Na minha memória ficaram guardados todos os sorrisos, todas as lágrimas, as tristezas e as alegrias de quem viveu por momentos numa terra de sonho!

Sandra Figueiredo
(Ao serviço da APARF)

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