Gestos que fazem milagres

O voluntariado em terras de Moçambique, junto dos leprosos e de tantos outros doentes para quem a vida não lhes sorriu, decorre sempre cheio de tantas surpresas. A APARF (Associação Portuguesa Amigos Raoul Follereau), está de parabéns, pois, tem criado a esperança em todos eles. Nunca é demais agradecer a tantos que fazem da minha presença, em Murrupula, um hino de solidariedade. Por isso, estas palavras, não são mais do que um agradecimento a todos os que alargam o meu trabalho. Tenho pena em não conseguir traduzir nas palavras os dramas, as vivências, a alegria, o êxito... tudo aquilo que só o coração consegue registar. Acredito que muitos esperassem, da minha parte, um texto. É natural! Perdoem-me, mas o cansaço de um dia tolhe até as vontades mais nobres. Talvez, este tempo do Natal, seja o melhor, para rasgar o silêncio e entrar, como um sorriso, com o meu muito OBRIGADO.

É assim todos os dias. Obrigado irmão Paulo. Muito obrigado. Depois de tantos kms percorridos na moto (e já são 15 mil kms), por caminhos de terra batida, onde tantas vezes o capim esconde aldeias e a areia traiçoeira nos obriga a uma condução mais cuidada e lenta, chegamos. O enfermeiro Rajá é o companheiro sempre das jornadas, tanto mais que é o responsável do programa de luta contra a lepra no distrito de Murrupula, com uma área de 3070 km2 e uma população estimada em 110 mil habitantes. Por baixo dum cajueiro frondoso, com a sua sombra refrescante estão sempre dezenas de leprosos que o activista conseguiu trazer. O activista é um voluntário moçambicano que vive na zona e que motiva os leprosos a concentrarem-se nos lugares predefinidos. São pessoas que trabalham gratuitamente e que ás vezes têm uma pequena recompensa. Como muitos andavam a pé,  ofereci, apenas, 12 bicicletas, apesar de serem 35 os que comigo trabalham.  

É uma alegria enorme quando os doentes nos vêem. Os sorrisos alargam-se e em muitos os restos dos dedos comidos pela lepra se cruzam para que possamos ver e ouvir o júbilo pela nossa presença. Estes momentos são sempre aproveitados para diagnosticar, curar e motivar os doentes. As conversas, os pedidos cruzam-se sempre roubando a vez e a voz. Todos querem ser escutados e não mais esquecidos. O tempo, é todo deles, mas mesmo assim muitos se queixam que só lhes demos apenas alguns minutos de atenção. Claro que num distrito tão grande e apenas duas pessoas a efectuarem um trabalho para mais de dois mil doentes, nem sempre há tempo para grandes conversas. 

As motos andam sempre carregadas. Para além dos medicamentos leva-se sempre sabão, pomadas, ligaduras... Como este ano Murrupula teve um surto enorme de sarna, tinha que fazer, todos os dias a pomada milagrosa, como diziam. Com a falta de medicamentos no mercado e o preço exorbitante de outros, aprendi, com os missionários a fazer a pomada que curou milhares de pessoas. Era uma mistura de sabão, açúcar, óleo e benzil-benzoate . O certo é que ás vezes os 50 kg diários não chegavam para tantos que nos procuravam. Ultimamente e porque a época das chuvas está próxima, distribuímos catanas e enxadas. Assim que as primeiras chuvas caíram, começamos também a oferecer a cada doente um pouco de amendoim. O certo é que já se distribuíram 1.700 kgs. 

Nada melhor do que dignificar a vida desta gente. Se a doença é estigma e por incrível que pareça contínua a segregar, é preciso romper com todas as barreiras e nada melhor do que possibilitar uma melhor qualidade de vida. Foi neste contexto que resolvemos distribuir utensílios agrícolas e sementes para que a vida lhes não seja tão madrasta. O certo é que, agora, até outros vêm ver se as manchas que possuem são de lepra, pois gostariam de receber o que não têm e que lhes traria, no futuro, menos preocupações. A pobreza absoluta em que as pessoas vivem, obriga-nos a optar só pelos leprosos, ainda que as outras “lepras” merecessem também o nosso apoio. O certo é que, agora, toda a gente anda feliz. “Nunca foi como agora”, exclamava um activista a propósito das muitas iniciativas que têm como único objectivo ajudar e promover. Os quase cegos têm óculos, os coxos sandálias e os que têm força catanas, enxadas e sementes. Pensamos continuar com este programa das sementes, tanto mais que as pessoas não as têm, fruto do ano nefasto que os assolou, devido à estiagem.

No dia 15 de Dezembro fizemos uma grande festa com todos os que trabalham com os leprosos. Reunimos os 35 activistas e o pessoal do Centro de Saúde de Murrupula. Matámos um cabrito e com um pouco de arroz e feijão, lembramos a generosidade de todos eles e o compromisso que têm de continuar apostados  em erradicar a lepra do distrito. Receberam uma pequena recordação para que se lembrem que o Natal é a festa da solidariedade. Lembrei-lhes, entre tantas coisas uma frase que aqui sistematicamente ecoa no meu coração: “Ninguém é tão pobre que não possa dar alguma coisa. Ninguém é tão rico que não possa receber”.

Passaram nove meses em que deixei o meu país, a família, os amigos e o meu trabalho. Talvez, muitos se interroguem se valeu a pena. Nesta actividade diária de encontro contínuo com os hansenianos, ergo o meu pensamento a Deus numa atitude de gratidão, porque ninguém é feliz sozinho e muito mais feliz se é quando faz da sua vida uma doação gratuita, atenta e disponível aos mais pobres. Os gestos por ínfimos que sejam produzem autênticos milagres.

Desculpem terminar esta minha partilha com uma oração do grande amigo dos leprosos, Raoul Follereau: “Senhor, ensinai-nos a pensar nos outros e fazei-nos sofrer com a dor alheia! Não consintais que sejamos felizes sozinhos, dai-nos a angústia da miséria universal. Fazei que, na felicidade e na dor, nós sejamos irmãos de todos para sempre. Sejamos...irmãos sem fronteiras”


Paulo Bica
Missão de Murrupula
(Voluntário da APARF)

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