(http://voluntariadoaparf.blogspot.pt/2018/02/relatorio-de-actividades-do-projecto.html)Continuação...
”Concedei-me,
Senhor, serenidade para aceitar as coisas que não posso modificar, coragem para
modificar aquelas que posso, e sabedoria para distinguir umas das outras”.
Descobri
esta “oração de serenidade” nos livros dos A.A., enquanto preparava uma das
sessões de grupo. Decido iniciar com ela o meu testemunho, porque parece fazer
todo o sentido, neste momento em que procuro por entre o meu léxico verbal
associações que me permitam exprimir e partilhar muito do que vou
experimentando.
O
Cubal é uma terra linda, muito verde, que me inspira sentimentos apaziguadores,
bem como de assombro!...
A
Missão Católica aparece, como por magia, revestida ao largo por vários montes,
quando pelas 7 horas pedalo na minha bicicleta o caminho de terra batida que
liga a cidade à missão. Falo em “magia”, porque é o que se sente quando
progressivamente nos vamos apercebendo dos ritmos, cores, cheiros, disposições
que a compõem… o hospital, onde se atendem diariamente centenas de doentes e
com uma organização estrutural que não julguei encontrar no interior de Angola;
os “complementos” do hospital, as cozinhas onde se prepara a alimentação dos
doentes e acompanhantes, a carpintaria, a rouparia, a farmácia interna e
externa, o armazém dos medicamentos, o laboratório, etc, etc; o bairro de São
José construído tijolo a tijolo para acolher refugiados, idosos, crianças e
cuja subsistência é auxiliada pelas Irmãs com incentivos continuados de aprendizagem
da autossubsistência, autonomia e dignidade; a comunidade das Irmãs Teresianas…
doçura, leveza, alegria… a fé a transbordar por todos os poros. A primeira
imagem que tive foi a de uma comunidade de “formiguinhas trabalhadoras”,
incansáveis, alegres, dia a dia unindo esforços, encontrando soluções, tornando
possível o inimaginável; as crianças e jovens a caminho da escola, ou
simplesmente a brincar à porta das casas, as mulheres cobertas de panos de
todas as cores com as crianças às costas e os fardos à cabeça, num exercício de
equilíbrio que desafia as leis da gravidade, os homens conduzindo
triunfantemente as suas motos, outros de bicicleta, outros a pé, outros
transportando doentes nos cangulus, os cães, as galinhas, os cabritos, as
várias músicas de fundo, quizomba, baladas brasileiras e música comercial
importada do ocidente… tudo isto me entra diariamente pelos olhos estimulando
todos os meus sentidos, alojando-se progressivamente no meu coração.
É
assim a missão de Cubal, o local onde há alguns meses atrás decidi juntamente
com o Pedro “viver” o projecto “Que Paz?” Num momento em que o mundo vivia
suspenso na questão do ataque ao Iraque pelos E.U.A. (que acabou por acontecer
com os resultados que sabemos) partíamos com vontade de experimentar outras
vias, outros caminhos para a paz, de explorar outras formas de comunicação ente
os povos que não a opressão bélica, a imposição cultural, politica e económica.
Partíamos à procura de um sentido mais profundo e comprometedor para a nossa
vida de Homens e também de Cristãos. Partíamos movidos pelo “amor” que
continuamente nos desinstala do “bem-estar” das nossas comodidades, nos provoca
e um dia nos fez sonhar… como dizia o poeta “pelo sonho é que vamos…” E fomos.
Hoje
escrevo estas palavras sem censuras, espontaneamente, com toda a verdade que
sei, porque é assim que a vida deve ser… um acto de amor espontâneo!
Trabalho
no hospital da missão, essencialmente no serviço de pediatria e centro de
nutrição infantil. Diariamente observo e trato cerca de 30 crianças. E tudo
poderia ser simples terminando aqui o meu testemunho, se não estivesse no
interior de Angola, onde a realidade reveste nuances até então minhas
desconhecidas. De manhã, quando saio de casa, não sei se vai ser uma manhã
“normal” com situações graves mas controláveis, ou se uma das duas crianças já
faleceram durante a noite, ou se outras irão morrer-me nos braços, ou se os
pais de uma outra com diarreia constantes decidiram fugir com a criança porque
já estavam “cansados” de estar no internamento, ou ainda se outros deram
tratamento tradicional às escondidas no internamento e a criança agravou o seu
estado, ou se não contaram se teve duas ou vinte dejecções e não deram soro
durante toda a noite, ou arrancaram a sonda para a alimentação porque acham que
faz mal, ou se duas crianças com anemia grave e não tendo doadores, os próprios
pais recusaram a doação por motivos absurdos, ou se vai chegar ao banco de
urgência uma criança doente há mais de dois meses, que já fez tratamento
umbundo e está num estado lastimável de desnutrição, desidratação, infecção da
pele, dos pulmões, insuficiência hepática, renal, etc, etc, etc, Pela manhã
enquanto pedalo até à missão, não sei se vou rir, se vou chorar, se vou sentir
revolta, impotência, frustração, angústia, pena, ternura, alegria… não sei se
vou desejar ficar para sempre, ou ter vontade de fugir pela porta fora a meio
da manhã. Pela manhã, pela tarde, pela noite… tudo é tão intenso!... O coração
que se aperta em sintonia com uma mãe que acaba de perder o seu filho, a
alegria tremenda por uma criança que acabou de sair de como e nos sorri pela
primeira vez, a revolta perante um povo que foi privado de tudo o que é básico
e essencial e continua actualmente a ser explorado, vendido, muitas vezes não
tendo essa consciência de que tem direito à saúde, à educação, a uma vida com
dignidade, a impotência perante a falta de “tudo” e a angústia de trabalhar com
meios tão precários que me limitam a avaliação diagnóstica bem como as possibilidades
de tratamento.
Os
primeiros meses foram dominados por esta mistura avassaladora de emoções
intensas e confusas. Foram também tempo de adaptação ao clima, à ausência de
água corrente e potável e ao ritual dos baldes, panelas e filtro, à falta de
luz diária, ao ritmo de vida casa-trabalho, trabalho-casa, à ausência de tudo o
que é “distracção”, informação, comunicação, às saudades da família e amigos.
O
projecto está a ser uma experiência (atrevo-me a um neologismo, bem ao jeito do
Mia Couto) “surpreendapaixonástica” a todos os níveis. De tempos a tempos vou
revendo as minhas vivências e pareço destrinçar melhor o essencial do
dispensável, perceber melhor o que me faz feliz, no fundo o que sou e do que
realmente preciso para viver.
Neste
momento o tempo e o vivenciar repetido das situações, os laços que vou
estabelecendo com a terra, a cultura e as pessoas vão permitindo a integração
da tempestade de afectos e redefinindo estares e atitudes mais adaptadas e
estruturadas.
Desta
forma vou continuando nesta “luta” diária pela vida. Lado a lado com as gentes
desta terra vou dando passos, pequenos passos que procuram sentidos, caminhos
outros para a Paz.
Cubal
– Ana Marques
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